Brânquias, maxilas e audição - parte 4
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As poderosas maxilas do tubarão tiveram uma origem tão simples... |
Sim, meu intrépido leitor que teve a paciência em chegar até aqui. Quem está pegando o barco agora, veja a parte um, a dois e, em seguida a parte três para ficar por dentro, ok? As fendas brânquias é uma outra característica exclusiva dos Chordata. Todos os seus representantes possuem ou possuiram em alguma fase de desenvolvimento. Nessa imagem podemos ver nitidamente as estruturas brânquias no embrião humano, com um pouco mais de um mês. No decorrer do desenvolvimento elas vão desaparecendo e dando lugar a outras estruturas como, por exemplo, a glândula tireoide. Nos animais aquáticos menos derivados - como peixes e tubarões - essas estruturas servem principalmente para captar oxigênio dissolvido na água. Por ser uma rede muito vascularizada, a água banha as brânquias e permite o animal realizar as trocas gasosas, eliminando o gás carbônico e recebendo oxigênio. Geralmente os grupos animais possuem um número pares de fendas branquiais. As lampreias, por exemplo, possui sete pares de fendas branquiais. Os peixes cartilaginosos possuem entre cinco e sete pares. Com o decorrer da evolução, as fendas branquiais foram recebendo um estrutura ósseo (ou cartilaginosa) que acabava reforçando a própria brânquia. E são essas estruturas que vou dar foco especial.
Acredita-se que o ancestral de todos os animais maxilados possuiam mais pares de fendas branquiais do que as atuais. As lampreias, como dito anteriormente, possui sete pares. Mas elas não possuem maxilas. Talvez os animais mais primitivos tivessem oito ou nove pares de fendas branquiais. Algumas desapareceram com o passar do tempo, como nas lampreias mas, no outro grupo, os arcos branquiais foram, aos poucos, se modificando em maxilas!
A imagem abaixo ajuda a esclarecer a questão.
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Possível surgimento das maxilas a partir dos arcos branquiais. |
Podemos ver no esquema acima que os dois primeiros arcos branquiais desapareceram ou fundiram-se com o terceiro[6]. O terceiro (em verde, no desenho), no entanto, começou a sofrer alterações morfológicas que possibilitaram eles serem manipulados através da musculatura, permitindo o movimento de abrir e fechar, típico das maxilas dos vertebrados! O quarto arco branquial (em vermelho) acabou se modificando como sendo um suporte para as maxilas e alguma de suas estruturas.
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Animais do Carbonífero[7] já apresentavam essa modificação nas estruturas. Clique para ampliar. |
Cada estrutura recebeu um nome em específico[8]: a modificação do terceiro arco branquial se transformou na cartilagem palatoquadrada (maxila superior) e em cartilagem de Meckel (maxila inferior). Já o seguinte recebeu o nome de cartilagem hiomandibular e hioide.
Essa história toda já é incrível - afinal, arcos branquiais se modificarem em maxilas é uma modificação nas funções e tanto - a Evolução nos mostra que essa história é mais incrível ainda. Com o passar das gerações, as espécies foram evoluindo naturalmente e parte dessas estruturas continuaram a se modificar para atender as necessidades do organismo no ambiente que estavam vivendo (muitas delas, inclusive, num ambiente totalmente novo, como os primeiros animais a adentrarem em ambiente terrestre). Mais uma vez vemos o quão incrível é a natureza. Essas estruturas que, nos animais mais basais se modificaram apenas em maxilas, nos mais derivados eles se transformaram nos conhecidos ossículos do ouvido!
Durante a evolução dos vertebrados, o hiomandibular foi se tornando cada vez mais desnecessário como apoio para a mandíbula já que os ossos dos crânio dos primeiros tetrápodes foram se suturando firmemente. O hiomandibular se modificou, nos anfíbios, "répteis" e aves, no ossículo estribo (também chamado de columella auris nesses grupos). Já nos mamíferos, como nós, existem mais dois ossículos que transmitem o som para o ouvido interno, o martelo e a bigorna. Eles tiveram origem a partir de modificações do ossos das maxilas. Um osso da maxila superior se transformou no ossículo bigorna e um da maxila inferior se transformou no ossículo martelo. Essas grandes modificações permitiram desenvolver os ossos que permitem os Tetrapoda ouvirem sons.
Resumindo essa série de posts: contei um pouco sobre Filogenia e como ela nos ajuda a entender a similaridade e a relação entre os organismos existentes. Com essa ajuda, foi possível mostrar que os arcos branquiais, que conferem suporte para as brânquias - e permitem o animal respirar - se modificou de tal forma que os animais deixaram de ser predados para serem predadores, graças a uma incrível modificação que permitiu os arcos branquiais virarem, ao longo da Evolução, em mandíbula. Mais incrível ainda é sua posterior modificação nos animais tetrápodes, em que essas estruturas se modificaram nos ossículos do ouvido.
Tentei, ao longo desses quatro posts, explicar uma dos eventos da Evolução mais incríveis que a Ciência consegue observar e explicar perfeitamente. Através do registro fóssil, das estruturas presentes hoje em animais vivos (tanto embriões quando adultos) e até mesmo em como organizamos as espécies foram determinantes para que traçássemos essa rota evolutiva e como a natureza não desperdiça recursos. Assim que um novo desafio apareceu para os animais os mais bem adaptados tomaram parte e permitiram que hoje nós, seres humanos, que também somos frutos dessa evolução, pudéssemos entender o quão incrível é a natureza.
Agradeço ao professor Reginaldo Donatelli por ter me ajudado em algumas dúvidas que surgiram no caminho.
Informações adicionais:
[6]: dependendo do autor, existe uma variação do número de arcos branquiais que o ancestral possivelmente deveria ter.
[7]: período da História da Terra que compreende entre 359 e 245 milhões de anos atrás. Aparece logo após o Devoniano, conhecido como a 'Era dos Peixes'.
[8]: muitas pessoas tem medo da Biologia por ela conter muitos nomes. Acontece que devido a diversidade enorme de estruturas, funções, sistemas e organismos que são estudados, diversos nomes acabam surgindo. Seria complicado dois especialistas conversando sobre um determinado assunto e não haver nomes ou termos par facilitar a conversa.
Com imagem por Science Photo Library, FORP, aqui, adaptação de Kuratani, S. (2005), aqui e por *NTamura e *alfred-georg em seu deviantART. Lampreia fotografado por @KehCampos. O 'meme Y U NO Guy' foi encontrado aqui e o meme Awesome Face foi encontrado aqui. Cladogramas baseado em HICKMAN et al. e POUGH et al, criado por mim (com colaboração de @LiviaMaisaa), protegido por CC.
Com informações de:
Kuratani, S. (2005). Developmental studies of the lamprey and hierarchical evolutionary steps toward the acquisition of the jaw. Journal of Anatomy, 207 (5), 489-99.
HICKMAN, C., ROBERTS, L., LARSON, A. Princípios integrados da zoologia. 11ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2009.
POUGH, F., JANIS, C., HEISER, J. A vida dos vertebrados. 4ª ed. São Paulo: Atheneu Editora, 2008.