A mágica do diagnóstico - post 2


Esse post faz parte de uma série de postagens sobre o assunto. Recomendo que leia a primeira postagem (pelo menos onde explico sobre o sistema imune), clicando aqui.

* * *

Vimos, na postagem anterior, que o sistema imune cria mecanismos de defesa muito importantes a curto e longo prazo. Os cientistas usam desse mecanismo para desenvolver vacinas e saber se uma pessoa já teve determinada doença. Isso acontece pois o corpo possui uma cicatriz sorológica, que nada mais é do que a memória de doenças passadas. Essa memória é útil para facilitar as defesas do corpo quando o mesmo patógeno nos ataca novamente. E é esse tipo de memória que os pesquisadores usam para os exames sorológicos.

Sorologia
Depois que você fica doente ou foi exposto a um antígeno, cópias de células de defesa que possuem moléculas que reconhecem esses antígenos ficam circulantes no sangue[1]. Os anticorpos irão se ligar ao antígeno sempre que ele se encontrarem. Isso é tão verdade que podemos fazer isso fora do corpo humano (ou dos animais). E fazemos isso no laboratório. As amostras de sangue são centrifugadas e obtemos dele o soro (a parte líquida do sangue, onde os anticorpos ficam, juntamente com outras proteínas). Se a pessoa entrou em contato com àquele antígeno, os anticorpos no soro irão se ligar ao antígeno também no laboratório. Podemos fazer esse tipo de ensaio em placas e lâminas. E a leitura pode ser feita de formas diferentes também.

Imunofluorescência
Uma das técnicas mais comuns é a imunofluorescência. Por esse técnica nós marcamos um anticorpo com uma substância chamada genericamente de fluoróforo que, quando recebe luz em um determinado comprimento de onda, absorve parte desta e emite outra, de outro comprimento de onda (ou seja, as cores acabam sendo diferente).


Existem diversos tipos de fluoróforos, além do exibido na imagem acima, cada um trabalhando com um comprimento específico de onda. Para tanto, é preciso de um microscópio próprio para tal: o microscópio de fluorescência. Com ele, você pode regular o comprimento de luz emitida para alcançar o ótimo de cada fluoróforo.

A técnica que mais usa esse produto é a Reação de Imunofluorescência. Apresentarei aqui a Reação de Imunofluorescência Indireta (RIFI ou IFAT), que é a técnica mais comum e o mais barato[2]. Nessa técnica, usamos um conjugado, que nada mais é que um anticorpo que ataca anticorpos. Esse anti-anticorpo (sim, é assim mesmo) está ligado (conjugado) com um fluoróforo[3]. O infográfico abaixo ilustra as etapas para melhor entender a técnica.

Infográfico explicando sobre a RIFI (IFAT). Dependendo da necessidade, a técnica pode ser levemente diferente.
Clique na imagem para ampliar.

Essa técnica, embora antiga, ainda é usada por sua simplicidade e por ter alta sensibilidade. Testes de raiva, sífilis, leishmaniose (como mostrado na imagem acima), doença de Chagas, toxoplasmose, e vários outros ainda podem ser feitos usando essa técnica. Como o organismo produz anticorpos específicos contra essas doenças, basta fixar o parasita de interesse na lâmina, reagir com o soro do paciente e depois com o conjugado e ler no microscópio de fluorescência.

Mas, como a sorologia é ampla, outros testes podem ser realizados em um laboratório usando o soro.

Imunoenzimáticos
Os testes imunoenzimáticos tem quase a mesma ideia da técnica de imunofluorescência, mas são mais sensíveis e produzem um resultado menos subjetivo[4]. Existem várias técnicas de imunoenzimáticos mas, a mais usada, é o ELISA (sigla em inglês para Enzyme-Linked Immunosorbent Assay). Existem vários tipos de ELISA (direto, indireto, sanduíche, competição) e cada um funciona a seu modo. Mas, todos eles possuem algo em comum: existe uma enzima ligada ao anticorpo. Só que não é essa enzima que muda de cor. Ela quebra o substrato (uma substância específica adicionada ao final do processo) que muda de cor. Quando mais anticorpo grudado ao antígeno (ou a outro anticorpo) estiver dentro da placa, maior será a mudança de cor e essa cor será medida no espectrofotômetro.

Talvez pareça um pouco complicado apenas lendo dessa forma. Portanto, veja o infográfico abaixo, onde explico um pouquinho melhor o ELISA sanduíche.

Infográfico explicando os conceitos do ensaio de ELISA (em detalhe para o ELISA sanduíche).
Clique na imagem para ampliar.

O espectrofotômetro é feito para ler as placas de ensaio, movendo cada poço da placa sobre a luz que é emitida. É importante ressaltar que qualquer coisa (até mesmo os mais translúcidos) podem absorver ou dispersar a luz (o que altera a quantidade de luz que é recebida no sensor). É importante ter esse conhecimento pois isso significa que a própria placa e os líquidos que foram inseridos lá dentro podem interferir no resultado (afinal de contas, queremos que apenas a mudança de cor nas amostras seja detectada). Para tanto, alguns poços da placa são deixados vazios e outros são feitos controles negativos. Assim teremos os valores de absorbância para o acrílico que é feito a placa e dos líquidos que estão dentro dos poços. Com esses valores conhecidos, nós descontamos dos valores obtidos das amostras, obtendo um resultado mais fidedigno.

O ELISA tem a vantagem de poder ser automatizado, o que permite que ele pode ser comprado quase pronto e que máquinas possam realizar todas as etapas mostradas acima. Testes de HIV, toxoplasmose, dengue e leishmaniose são feitos usando esse ensaio imunoenzimático.

Mas não se engane que os ensaios sorológicos estão restritos apenas a esses dois tipos de testes.

Imunocromatográficos
Provavelmente todo mundo ouviu falar do 'teste de gravidez de farmácia'. O teste de gravidez nada mais é que um tipo de ensaio imunocromatográfico. Esses testes, em sua maioria, detectam a presença de um hormônio que é produzido pelo embrião quando este fixa no útero. Esse hormônio, a gonadotrofina coriônica humana (hCG), é exclusivo da gravidez[6] e sua detecção na urina da mulher é de quase 100%.

O método pelo qual os ensaios detectam a doença é muito semelhante ao teste de gravidez e ele se utiliza da mesma ideia do conjugado que lemos na RIFI (que é um anticorpo ligado a um fluoróforo). Só que, nesse caso, o fluoróforo são partículas de ouro coloidal[7] que, quando acumuladas, apresentam cor avermelhada.

O infográfico abaixo explica um dos tipos de teste imunocromatográfico que existem no mercado.

Infográfico explicando sobre a imunocromatografia de fluxo lateral, um dos mais comuns e simples testes
rápidos. Clique na imagem para ampliar.

A solução tampão (um líquido que permite manter o pH da reação estável e ajudar a molhar a membrana de nitrocelulose, levando os anticorpos do sangue para uma área intermediária (que fica protegida do meio externo pelo carcaça do teste). Nessa área intermediária, se encontra o conjugado, que irá se ligar aos anticorpos do sangue (caso a pessoa seja positiva). A medida que esses produtos correm pela membrana, eles encontram a área de teste (marcado com T na maioria dos produtos). Lá eles entrarão em contato com os antígenos de interesse. Caso a amostra de sangue for positiva, os anticorpos do paciente se ligarão aos antígenos e ficarão presos lá, que acabará formando uma faixa avermelhada. O restante dos anticorpos e do conjugado que não se ligou seguirá pela fita até serem parados por anticorpos que se prendem a qualquer outro anticorpo. Se tudo deu certo, essa parte também terá cor (a área de controle (C)).

A grande vantagem desse teste é a facilidade em ser aplicado, mesmo em áreas longe de laboratórios e eletricidade e permite fazer uma triagem de uma determinada doença em uma região. Testes de malária e hepatite são feitos dessa forma. A leishmaniose canina usa, como forma de triagem, o teste rápido. Em caso de cão positivo, amostra do animal é levada ao laboratório para um teste confirmatório que é feito usando ELISA.

O processo de detectar o antígeno (ao invés do anticorpo) também é possível de ser feito, só colocando na área intermediária o anticorpo contra o antígeno e, na área de testes, o conjugado. O teste de gravidez e da dengue[8] são feitos dessa forma.

Sim, uma simples amostra de sangue é possível de realizar todos esses testes importantes na detecção de doenças. Existem ainda outras técnicas que podem ser usadas pelos pesquisadores em suas amostras. Destaco, rapidamente, dois ensaios muito utilizados mas que, infelizmente, meu conhecimento não permite aprofundar tanto nelas: o SAM e o MAD.

O teste de Soroaglutinação Microscópica (SAM ou MAT) detecta a capacidade de anticorpos se aglutinarem o antígeno. Ele é o padrão-ouro para detectar leptospirose na urina, soro ou, até mesmo, em esperma dos animais. O microscópio é diferente de um ótico comum. Usamos o microscópio de campo escuro para verificar se houve ou não aglutinação entre anticorpo e antígeno, que é visível uma formação de grumos brancos no fundo preto.

Já o teste de aglutinação direta modificada (MAD ou AG), comumente usada para detectar a toxoplasmose, tem a mesma ideia do SAM, com a diferença de que é preciso uma grande quantidade de protozoário para que a técnica dê certo. Para tanto, camundongos modificados são usados para servirem de reservatório para doença. Os taquizoítos (nome dado ao protozoário de Toxoplasma gondii dentro das células hospedeiras) são coletados e lavados para, então serem usados na técnica. Em uma placa de fundo em V, anticorpos do paciente e o antígeno são misturados. Após um período de até 24 horas, os pacientes positivos para toxoplasmose terão anticorpos que irão aglutinar com os protozoários, formando uma malha opaca no líquido. Já as amostras negativas, por não ter anticorpos, os protozoários decantam e formam um pontinho no fundo da placa.

* * *

Espero que vocês tenham gostado da segunda postagem dessa série sobre como detectamos algumas doenças em laboratório. Na próxima postagem, aprenderemos mais algumas técnicas, com abordagens diferentes. Espero você!

Agradecimentos:
Agradeço ao pessoal do Instituto Adolfo Lutz (a Kethlyn e Vírginia, especialmente) pela lâmina de RIFI usada no infográfico, a Gabriela "Peruana" do APTA por me fazer entender mais sobre o SAM e a Daniela do Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia de Botucatu por ter enviado fotos e uma extensa explicação do MAD via Whatsapp. Adoro fazer ciência com vocês! =D

Rodapé:
[1]: qualquer coisa é um antígeno. Um exemplo interessante é a tipagem sanguínea. Eu, por exemplo, sou sangue tipo O. Todos sabem que só posso receber sangue do mesmo tipo sanguíneo pois eu tenho anticorpos contra os tipos A e B. Mas, como eu tenho anticorpos contra eles se não fiz nenhuma transfusão de sangue com esses tipos sanguíneos para o meu sistema imune reconhecer como sendo algo estranho? Acontece que sempre estamos em contato com antígenos do ambiente. Alguns desses antígenos podem ser muito parecidos com os antígenos que são característicos dos tipos A e B. Por isso nosso corpo desenvolve uma resposta contra esses antígenos, o que nos torna incapazes de receber esses tipos sanguíneos quando maiores. É sabido, por exemplo, que algumas doenças autoimunes (quando o sistema imune ataca as células do próprio corpo. Veja mais nessa postagemhttp://www.nano-macro.com/2014/04/como-nosso-sistema-imune-tolera-si.html que fiz sobre o assunto) surgem depois de algumas infecções, já que algumas doenças possuem antígenos muito parecidos com nossas próprias moléculas.

[2]: existe o método direto dessa técnica mas ela é mais caro e mais trabalhosa, já que o fluoróforo deve ser inserido no anticorpo do soro que está trabalhando.

[3]: atualmente esses produtos são produzidos por empresas destinadas ao mercado científico. Existem conjugados específicos para cada tipo de amostra que está trabalhando. Por exemplo, em minha pesquisa de mestrado eu usarei um conjugado anti-anticorpo de primata. Caso um outro pesquisador trabalhe com soro de cão, ele deverá comprar um conjugado anti-anticorpo de cão. Isso acontece pois cada anti-anticorpo se ligará a uma região conhecida do anticorpo do animal de interesse (e cada animal tem uma conformação diferente).

[4]: a RIFI é lida por um microscopista que verifica a intensidade de brilho que ele vê no microscópio. E isso pode ter alterações, dependendo de quão calibrado está o microscópio e como está a visão do pesquisador. O imunoenzimático, por sua vez, terá a intensidade da luz medida por um aparelho, que exibirá a absorbância[5] e exibirá os resultados em formato de números.

[5]: absorbância é um cálculo matemático da absorção de luz de uma determinada substância. O vidro, por exemplo, embora ele nos pareça translúcido, absorve certas frequências de onda que podem ser medidas por um equipamento. É usado em diversas áreas, desde a saúde até a astronomia.

[6]: pessoas saudáveis não secretam esse hormônio naturalmente. A presença desse hormônio em mulheres não grávidas ou homens pode indicar câncer, já que algumas células podem secretar esse hormônio.

[7]: não, não vale a pena assaltar a farmácia para roubar os testes de gravidez e tentar extrair o ouro deles. É irrisório. Talvez tenha mais ouro circulando em seu organismo e nos componentes do seu celular do que nesses testes.

[8]: o teste rápido da dengue detecta a presença do antígeno NS1, que é comum ao vírus da dengue. Entretanto esse teste deve ser feito, no máximo, cinco dias após o início dos sintomas. Até esse período, a carga viral no sangue do paciente ainda é alta e detectável pelo teste. Depois desse período, os níveis de anticorpos no sangue aumentam e o viral cai. Então recomendá-se fazer ELISA.

Imagem que abre a postagem feita por Ian Howard em seu Flickr, modificada. Todos os infográficos foram feitos por mim, protegidos por Creative Commons. Quer uma versão para impressão? Entre em contato comigo pelos comentários ou na seção de contato.

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