9 Meses - post 9

Para Ana, até os lençóis podem ser usados para Carlos aprender um pouquinho de Embriologia.

Algo em comum...
Nove horas da noite. Uma tênue luz vindo da rua ilumina o quarto do casal. Na cama, Carlos acariciava o ventre de Ana, que ora estava acordada, ora estava cochilando. Mil coisas passavam na cabeça de Carlos. Era preciso um quarto novo, comprar roupas, fraudas, preparar o hospital para o parto, etc. Ele sabia que estava cedo demais para pensar nisso, mas desde o momento em que recebera a notícia na hora do almoço, ele não descansara e pensara em mil coisas.

A barulhenta janela da casa vizinha acordou Ana de seu cochilo. Carlos levanta a cabeça e olha para o belo rosto de sua esposa.

-- Tudo bem, querida?

-- Está tudo ótimo, amor... o que você estava fazendo?

-- Acariciando sua barriga...

-- O que será que está se passando nesse momento com ele, né? - pergunta Ana, pensando em cativar Carlos em uma agradável aula de Embriologia.

-- É verdade amor, o que sera que está se passando com ele dentro de você?

Ana levanta e pega o livro de Embriologia que estava na estante ao lado de tantos outros livros de Biologia que ela comprara desde a graduação.

-- Bom, vamos usar as imagens que existem nesse livro que irão nos ajudar a entender o que ocorre com aquela bolinha de células. Bom, lembra que te mostrei que o embrião não passa de duas camadas de tecido dentro de uma bola?

-- Sim, me lembro... mais ou menos, mas lembro.

-- A camada mais acima, o âmnion, certo? - o marido concorda com a cabeça - logo abaixo temos o epiblasto e abaixo, formando o saco vitelino, o hipoblasto, correto? - o marido concorda com a cabeça, novamente - Pois bem, no local onde será a futura boca do futuro bebê, um grupo de células do hipoblasto adquirem uma característica morfológica diferente: elas passam a ser cilíndricas[1]. Esse grupo de células recebe o nome de placa pré-cordal. Elas servirão de limitante para um evento celular que vai ocorrer no epiblasto - nesse momento ela mostra o desenho para o marido.

Imagem 1: Desenho esquemático mostrando o desenvolvimento embrionário na terceira semana. Em 'A'
uma visão geral do embrião, em corte mediano. Em 'B', imagem de corte do desenho 'A' de acordo com a
lâmina. As lâminas que cortam o desenho 'B' estão ao longo do post. Em 'C' é visível as estruturas
que são visíveis no embrião. Observe que o embrião vai crescendo de tamanho com o passar do tempo,
como vemos em 'D'. Em 'E', corte da imagem 'D' mostrando o desenvolvimento do processo notocordal.

-- O que é isso? - questiona o marido, tentando entender.

-- As células do epiblasto começam a se multiplicar das bordas em direção ao centro. Isso começa a criar essa dobra no tecido no meio. Chamamos isso de linha primitiva! Ela vai crescendo a medida que as células da extremidade caudal, ou seja, do outro lado da placa pré-cordal, que sei que é a extremidade cranial, vai multiplicando. Aí elas vão... tá tudo bem?

Imagem 2: Detalhe mostrando a placa pré-cordal,
que é uma modificação celular do hipoblasto.

-- Mais ou menos, tá começando a ter muita coisa que não estou entendendo direito...

-- Hum... - Ana se põe a pensar. Obviamente ficar explicando as coisas apenas falando e mostrando as figuras não será algo muito construtivo. "Para mim é fácil", pensou, "já que sei o conteúdo e apenas ver as figuras consigo lembrar. E se eu usar as táticas de meu professor quando explicava isso para a turma?" Nisso, ela olha em volta e, após alguns segundos, tem uma ideia. Ela levanta da cama e logo retorna com um frasco de desodorante aerossol e um elástico para cabelos.

-- Hum, estou até vendo: é outra de suas explicações adaptadas, não é?

-- Você não gosta? - perguntou, arrumando o lençol sobre a cama.

-- Eu gosto, mas da última vez que você fez isso, acabou destruindo meu prazer em comer lasanha.

-- Deixe disso, mas você aprendeu, não aprendeu? - pergunta Ana e o marido concorda com a cabeça - Bom, voltando aqui. Está vendo a cama, certo? Ela será meu jeito de explicar sobre as coisas. Imagine que a cama é o saco vitelino e esse lençol que cobre o colchão é o hipoblasto, certo? - o marido concorda - Imagine, também, que esse lençol o qual nos cobrimos será o epiblasto, tá? Estamos vendo de cima e o âmnion foi cortado fora. Vou colocar esse lacinho de prender o cabelo aqui, em cima da cama, ele será a minha placa pré-cordal, que está no hipoblasto, correto? - disse, cobrindo o lacinho com o lençol e formando uma marca nítida no mesmo.

-- Sim, essa placa sinaliza o local da futura boca.

-- Exato! Pois bem. No outro lado do lençol (o epiblasto), as células começam a se multiplicar e formam esse aspecto enrugado no meio dele, ok - nisso, ela foi puxando o lençol levemente para o meio, formando uma pequena vala e duas pequenas montanhas de cada lado - essa coisa toda aqui é a linha primitiva. Essa pequena vala no meio é o sulco primitivo.

-- Hum... ela começa do outro lado do embrião. Ou seja, do ânus.

-- Sim, existe uma membrana cloacal na outra ponta do embrião, já que sabemos que, do outro lado, está a placa pré-cordal, que sinaliza a cabeça do embrião.

-- Quer dizer que essa linha primitiva vai crescendo até chegar nessa placa?

-- Não exatamente. Mais ou menos no meio do embrião - disse, pressionando o dedo no lençol, formando uma depressão - forma um amontoado celular chamado de nó primitivo. Esse nó primitivo tem um fosseta primitiva, que é um pequeno buraco. Essas células continuam a se multiplicar loucamente e elas irão, a partir de agora, descer entre o epiblasto e o hipoblasto. Elas formarão um tubo celular que irá crescer por baixo do lençol e irá formar o chamado processo notocordal. Esse tubo irá parar exatamente quando encontrar a placa pré-cordal - então, num rápido movimento, Ana saca o desodorante e coloca embaixo do lençol, simulando o processo notocordal.

-- Caramba, e acaba aí?

Imagem 3: Desenho esquematizando as etapas da formação da notocorda. Em 'F', a visão lateral do embrião.
A caixa delimita o detalhe que serão vistos nas letras 'G' a 'K'. Em 'H' podemos ver a degradação do assoalho
da notocorda e a degradação completa visto em 'I'. Em 'J' e 'K' vemos o processo da formação da notocorda
propriamente dita. Em 'L', 'M' e 'N' temos os cortes frontais de 'I', 'J' e 'K', respectivamente.

-- Não, pelo contrário. Depois de chegar ao fim do trajeto, a parte do processo notocordal voltada para baixo, ou seja, voltada para a cama (o saco vitelino) se fundem e depois degeneram. É como se abríssemos a parte de baixo do desodorante, certo? Quando isso acontece, o líquido que existe no saco vitelino e do âmnion se comunicam um pouco, por causa da fosseta primitiva, certo?

-- Sim...

-- Logo depois de ficar esse tempo aberto, multiplicações celulares da parte cranial desse processo notocordal irão fechando esse tubo novamente, formando a notocorda! A medida que o vai ocorrendo essas multiplicações, a linha primitiva recua novamente, levando o nó primitivo consigo, o que vai alongando a notocorda e faz ela ficar grandona.

-- Mas se essa linha regride, por que ela foi até o meio de pois voltou?

-- É que durante esse tempo, as células do sulco primitivo, a vala que existe na linha primitiva, vão se multiplicando para baixo, em direção da cama. Elas começam a preencher o espaço entre o epiblasto e o hipoblasto, formando uma nova camada de tecido, o mesoderma. É o mesoderma que os órgãos e estruturas funcionam e surgem.

-- Ah é, que legal...

-- O mais legal ainda, é que algumas células do epiblasto entram por entre as células do hipoblasto, as substituindo. Com o tempo não teremos mais nenhuma célula do hipoblasto e sim as que vieram do epiblasto. Quando isso acontece, não temos mais o hipoblasto e sim o endoderma. E o próprio epiblasto passa a ser chamado de ectoderma.

Imagem 4: Desenho mostrando que as células do sulco primitivo
originam os dois outros folhetos embrionários: a mesoderma e
a endoderma. O último ocorre por substituição celular do
hipoblasto por essas células vindas da ectoderma.

-- Meu Deus! - disse, colocando as mãos na cabeça.

-- Essa é uma das etapas mais importantes da Embriologia, o surgimento dos três folhetos embrionários: o ectoderma, mesoderma e endoderma. O embrião não se encontra mais em fase de blástula. Agora ele está em fase de gástrula. Outra coisa legal que vimos surgir aqui foi uma característica fundamental que nos coloca entre todos os demais animais vertebrados da Terra: o surgimento da notocorda[2]!

-- E para que serve?

-- Originalmente, serve como um eixo de sustentação do corpo de alguns poucos animais. Em animais mais derivados, existe apenas um resquício dele, que é o disco vertebral, que amortece os impactos na coluna.

-- Legal... e as coisas acabam aí?

-- Bom, acabar não acabam, mas acho que está um pouquinho tarde para continuar - disse, olhando para o relógio e vendo que passavam da 22h30 - amanhã eu conto o que acontece com as coisas depois, tá?

-- Tudo bem... - disse o marido se levantando da cama

-- Querido, - chama Ana que estava deitando - poderia guardar o lacinho, o desodorante e esticar o lençol para eu dormir... já que você está de pé, né... - disse, com um sorrisinho maroto no rosto. Dois segundos depois, um travesseiro voa em sua direção. Sem demora, da rua, era possível ouvir as risadas da mais divertida guerra de travesseiros.

Informações extras:
[1]: as células do hipoblasto são, de forma geral, cúbicas. As células da placa pré-cordal do hipoblasto ficam cilíndricas. Você pode encontrar outros nomes para esse tipo de células, como colunares ou prismáticas.

[2]: na realidade a notocorda reúne mais animais do que simplesmente os vertebrados. Todos os animais que apresentam a notocorda em alguma fase da vida estão dentro do grande táxon Cordata. Entretanto, como a quantidade de espécies que possuem notocorda mas não são vertebrados é pequena, Ana resolveu simplificar um pouco o assunto com o marido.

Com imagem por ~aimeelikestotakepics em seu deviantART. Desenhos esquemáticos feitos por mim, protegido por CC.

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