9 Meses - post 26

Carlos precisou da ajuda do velho livro de Embriologia de Ana para entender como
se desenvolveu o coração de sua pequena.

Ambos, em um só ritmo...
O ambiente cheirava como novo. De certa forma estava novo: a pintura, os móveis e muitas roupinhas compradas recentemente deixavam o quarto convidativo a passar a tarde por lá. A poltrona, comprada com o objetivo de permitir à mãe amamentar também chamava para uma boa leitura aproveitando a luz do Sol que entrava mansa através da cortina clara. Ainda não havia nenhuma criança andando por ali mas o cheirinho de bebê estava em todos os cantos do novo quarto da primeira filha de Ana e Carlos.

Ana estava feliz já que o plano do quartinho estar pronto antes da bebê nascer dera certo. Em breve Ana estaria de licença do laboratório onde trabalha. Como uma boa bióloga, ela estava desejosa em ter um filho por parto normal. Carlos não se entrometia nesse assunto mas sabia através de programas de TV (Ana dizia que já tinha falado para ele sobre isso também) que o parto normal é muito mais saudável, tanto para a mãe como para o bebê. A recuperação é muito mais rápida e evita tratamentos médicos desnecessários. O médico de Ana nem se atreveu a empurrar uma cesariana para Ana, sabendo que ela negaria.

Ana estava no batente da porta do quarto novo quando ouviu passos atrás de si. Ao virar viu Carlos chegando chegando vagarosamente, espiando o quarto que ele ajudou a planejar.

-- Ficou bom não é, meu amor? - perguntou Carlos, dando um beijo no rosto de Ana.

-- Está lindo, do jeito como imaginava... - disse, com a voz levemente distorcida pelo fato de sua bochecha estar amassada pelo demorado beijo de Carlos.

-- Bom, você está pronta? - Ana responde positivamente com a cabeça - então vamos.

Carlos dificilmente acompanhava Ana em suas visitas ao consultório médico. Não que não quisesse. As consultas eram quase sempre marcadas em horários onde Carlos não podia comparecer. Entretanto hoje deu certo para o casal ir fazer o exame pré-natal.

Após uma espera rápida, o casal é chamado para a sala do médico.

-- Olá Carlos, finalmente deu certo para você vir? - perguntou o médico Steven, cumprimentando Carlos firmemente quando ao mesmo tempo acenava para sua assistente indicando que deveria preparar Ana para os exames - bom, acredito que Ana o mantenha bem informado sobre o andamento de sua menina. Já escolheram o nome?

-- Ela sempre me conta como anda nossa bebê... bem, quanto ao nome ainda não sabemos ao certo. Estamos pensando em... - nesse momento Ana interrompe Carlos.

-- Amor! Temos que fazer surpresa - nisso, uma nítida expressão de desapontamento é visto no rosto do médico e da assistente. "Paciência", pensou o médico.

Após os exames de rotina, Steven resolve usar um estetoscópio especial onde é possível ouvir os batimentos do coração do bebê[1]. Ana já ouvira algumas vezes mas para Carlos era uma nova experiência. Os batimentos (que mais se assemelhavam a um líquido barulhento correndo bem rápido) emocionaram o pai coruja.

"chuc-chuc-chuc-chuc-chuc"

Carlos nunca sentiu sua filha tão real como aquele momento.

* * *

Mais tarde, já em casa, Ana procura por Carlos pela casa. Acabou encontrando o amado sentado na poltrona no quarto da em breve filha.

-- Parece que andas pensativo, meu amor? O que aconteceu? - perguntou Ana, entrando lentamente no quarto. Carlos observou sua mulher, barriguda, usando um vestido próprio para grávidas de cor rosa-claro.

-- Estava pensando no barulhinho que ouvi hoje no consultório. Como pode um coraçãozinho tão pequenino bater tão rápido!?

-- Pois é, meu amor - disse Ana, com um sorriso no rosto.

-- Amor, como o coração se formou em nossa pequenina?

Ana para um pouco para pensar. Lembrou que era um assunto cheio de detalhes e que precisava dar uma filtrada no conteúdo e selecionar aquilo que era realmente importante. Ana ia começar a falar quando Carlos levanta e convida sua esposa a sentar na poltrona. O marido, sem alternativa, resolve sentar no macio tapete à frente da poltrona.

-- Bom, meu amor... lembra bem no começo do desenvolvimento que o coração do bebê não passava de um tubo que pulsava?[2] - o marido fez que sim com a cabeça, mesmo ambos sabendo que ele não se lembrava muito bem - pois bem, no meio desse tubo, depois de um tempo, surge o que chamamos de coxim endocárdico. Esse coxim cria uma separação nítida entre os átrios, que fica na parte de cima do coração e os ventrículos, que ficam na porção de baixo do coração. Ele servem principalmente como válvulas que controlam a passagem de sangue dos átrios para os ventrículos.

-- Hum... entendi - disse o marido, imaginando as coisas acontecendo nesse coração. Então ele resolve questionar - amor, se eu pegar aquele seu livro e você mostrar as imagens, acho que eu entendo melhor.

-- Você diz aquele livro de Embriologia? - o marido concorda com a cabeça - pegue, fazendo o favor para mim então amor - o marido rapidamente levanta e, em questão de segundos, ele retorna com o livro na mão - hum, vejamos... achei!

Esquema simplificando as primeiras etapas do desenvolvimento do coração. Em 'A' uma visão externa
do coração (visto do lado esquerdo; seio venoso na porção dorsal) com cerca de quatro semanas.
Em 'B' e 'C', um corte de 'A' mostrando o desenvolvimento interno (visto de frente). O coxim endocárdico
que surge no centro do coração serve como um separador átrio-ventricular.  É possível ver, em 'C',
o surgimento do septo interventricular e do septum primum.

-- Então querido - disse Ana para Carlos apontando para o livro - a separação dos ventrículos é bem simples. Um pedaço do músculo ventricular começa a crescer em direção ao coxim endocárdico. Esse pedaço de tecido é chamado de septo interventricular. Por volta da oitava semana, ou seja, quando o embrião já é um feto, o septo interventricular fecha totalmente, separando de vez os dois ventrículos, o direito do esquerdo.

-- Hum, interessante... e os dois átrios se separam também, não é?

-- Septam sim, mas o processo de septação deles é mais complexo. Irei explicar de forma simples para você, certo? Vai acompanhando essas figuras dessa página para você ir entendendo - disse Ana, apontando  para o livro - entre os átrios surgem um primeiro septo, chamado de septum primum. Esse septum começa a crescer em direção ao coxim endocárdico. Enquanto ele cresce, existe um espaço que ainda não foi preenchido, certo? - o marido concorda com a cabeça - pois bem, esse espaço é chamado de foramen primum. Pois bem, a medida que vai desenvolvendo o septum primum começa a aparecer algumas perfurações que depois de um tempo se unem. Esse buraquinho no tecido é chamado de foramen secundum.

-- Nossa, quanto nome em latim! - Ana concorda com a cabeça, acompanhada de uma leve risada. Ela continua.

-- Então amor, esse septum primum finalmente encontra o coxim, se fechando completamente, exceto pelo espaço onde ficou aberto antes, o foramen secundum. Agora acontece o mais legal. Ao lado desse septo, do lado do átrio direito, surge um outro septo, o septum secundum que irá crescer também quase do mesmo jeito do primum. E assim como o primeiro septo, o segundo também tem uma área que ainda não foi preenchida, né? Essa área é chamada de forâmen oval.

-- Hum...

-- Pois é. Só que esse forâmen oval não se fecha! O septum secundum não se fecha totalmente, deixando esse espaço em aberto. E o mais interessante: lembra que do septum primum ficou o foramen secundum? Então, o foramen secundum se comunica com o forâmen oval, permitindo que o sangue passe de um átrio para o outro!

Desenho esquematizando o desenvolvimento da septação dos átrios. Em 'A' e 'B' vemos um coração
de um embrião por volta de cinco semanas. A imagem 'A' ilustra o corte das imagens da
coluna 1 ('C1', 'D1', etc.) e 'B' ilustra o corte das imagens da coluna 2 ('C2', 'D2', etc.). Na linha 'C' vemos
o surgimento do septum primum que continua a crescer em direção ao coxim endocárdico, como
visto na linha 'D' e 'E'. Nestes é possível ver o surgimento de perfurações no septum primum que
levam a surgimento do foramen secundum. Em 'F', 'G' e 'H' vemos o desenvolvimento do septum
secundum
 no lado do átrio direito e a formação do forâmen oval, que se comunica com o
foramen secundum, permitindo o sangue realizar a seguinte passagem, como apontado em 'I'.

-- Mas por que isso?

-- Você tem que lembrar que o sangue oxigenado vem da mãe pela placenta e não dos pulmões. Se esse espaço ficasse fechado, o sangue bem oxigenado não chegaria onde realmente precisa ir. Esse atalho permanece durante toda a vida fetal. Ao nascer, o recém-nascido ainda tem esse forâmen. Apenas após alguns dias que ele se fecha realmente para que o sangue circule do jeito como circula em um adulto. Todas as veias e artérias que ligavam o feto à mãe viram apenas ligamentos sem utilidade no organismo depois que a criança nasce.

Desenho mostrando a circulação sanguínea de um feto antes do nascimento. Os vasos
vermelhos carregam sangue rico em oxigênio, em roxo o sangue com médio em oxigênio e
em azul o sangue pobre em oxigênio. O sangue que vem da placenta (rico em oxigênio) é
levado até o átrio direito. No fígado, existe um controle que permite que a maior parte do
sangue tenha vindo da placenta. No coração, o forâmen oval permite a passagem de grande
quantidade de sangue rico em oxigênio para o átrio esquerdo, permitindo levar esse
sangue para o corpo. Uma ligação entre o tronco pulmonar e a aorta misturam o sangue pobre
e o rico em oxigênio, onde é distribuído por toda a porção abaixo do coração. Depois do
nascimento, todo esse sistema de irrigação vindo da placenta se fecha e torna-se apenas
um ligamento. O mesmo vale para a ligação entre o tronco pulmonar e a aorta. O forâmen
oval se fecha e não há mais passagem de sangue entre os átrios.

-- Uau, que bacana...

-- Gostou da aula sobre coração, amor?

-- Adorei... fiquei muito feliz em saber das peripécias que o coração da nossa filhota fez para bater forte! - disse Carlos, abraçando a esposa. Ana, enquanto recebia o afago gostoso de Carlos, pensou: o coração de todos nós se desenvolveu assim. Tantas peripécias para aguentar, mais pra frente, aquela sensação gostosa de estar apaixonado e sentir aquele amor que vem dentro da gente, da minha filha que vai nascer.

Informações extras:
[1]: os médicos usam para ouvir os batimentos cardíacos dos fetos uns estetoscópios especiais onde é possível captar os ecos da pulsação do feto e ampliar os sons. O estetoscópios de Pinard ou o Doppler fazem esse papel muito bem. Você pode ouvir o batimento cardíaco de um feto (quase do mesmo jeito que Carlos ouviu no consultório médico) clicando aqui.

[2]: você pode lembrar sobre o assunto no post da série sobre o surgimento do coração primitivo.

Imagem que abre a postagem por ~GamerFromHell em seu deviantART. Todos os desenhos foram feitos por mim, protegidos por CC. Caso deseje usar, referencie para essa postagem.

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