9 Meses - post 30

Sentimentos à flor da pele. Ana está nos momentos finais do parto.

Luz!
Luzes eram vistas em intervalos regulares a medida que uma mulher barriguda passava deitada em uma maca em direção à sala de parto. Algumas pessoas ao redor comentavam sobre um problema pessoal e sobre a falta de um determinado medicamento que Ana desconhecia o nome. Durante o percurso até a sala de parto, perguntaram três vezes à Ana se estava bem. Chegando na sala de parto, alguns aparelhos foram sendo ligados a ela. Em segundos, o "pi-pi-pi" medindo seus batimentos cardíacos acoavam na sala. Em seguida chegou o médico obstetra de Ana[1]. Ele cumprimentou rapidamente a equipe presente na sala e conversou com uma das enfermeiras. Então Ana ouviu o médico soltar uma ordem:

-- A solução de Orastina[2] está pronta? Coloque zero-cinco na veia dela, tá? Ficaremos de olho.

-- Doutor, o que é essa Orastina? - questionou Ana, observando de um ângulo ruim para sua cabeça. O médico chega próximo de Ana e diz:

-- É um medicamento que vai aumentar as suas contrações para ajudar o bebê a sair.

-- É uma solução de ocitocina?

-- Sim Ana... é isso mesmo. Às vezes eu esqueço que você é bióloga e sabe das coisas - disse, com um sorriso brincalhão no rosto, enquanto passava a mão na cabeça de Ana, despenteando levemente os soltos cabelos de Ana.

Depois de alguns segundos, Ana viu uma das enfermeiras injetando a solução de ocitocina em uma válvula que vinha do soro que estava em seu braço algum tempo. Ana não sabia se era algum efeito placebo[3] ou se o medicamento estava fazendo efeito mas, segundos depois da aplicação, Ana sentiu uma forte contração, soltando um grito.

-- Muito bem Ana, vamos arrumá-la e iremos te ajudar, certo? - disse o médico. No mesmo instante, as enfermeiras estavam arrumando o corpo de Ana, levantando suas pernas para permitir acesso ao canal de parto - deixa-me ver rapidamente. Hum... estamos bem avançados. O canal está bem dilatado - e se virando para a porta - onde está o pai que vai perder o parto?

-- Carlos? - indaga Ana. O suor já escorria pela testa de Ana. Ana ouve uma enfermeira dizendo discretamente que ele está terminando de colocar a vestimenta adequada antes de entrar na sala.

-- Muito bem Ana - começou a dizer o médico - quando você sentir a contração vindo, quero que você a ajude, certo? - e se virando para a enfermeira - acho a episiotomia[4] desnecessário nessa situação. Deixe o bisturi de lado.

Carlos, com uma câmera na mão, entra na sala de parto e vai rapidamente ao lado de Ana.

-- Amor, tudo bem com você? - disse Carlos, apertando um botão da câmera e filmando o chão, por um momento.

-- Sim... - uma contração surge e Ana grita. O médico pede para Ana empurrar. Ele acredita que está vendo algo pelo canal de parto.

* * *

Ana sabia que seu coração estava batendo forte. Ela ouvia seu coração pelos "pi-pi-pi" do aparelho mas conseguia ouvir o próprio sangue pulsando no pescoço. A dor que ela sentia a cada forte contração que vinha em ondas cada vez menos espaçadas era algo que ela nunca havia sentido antes. Nem a cólica mais forte antes da menstruação chegava perto do que estava sentindo. Entretanto ela poderia simplesmente pedir para pararem com a dor e facilitarem a vida dela. Mas um sentimento que ela nunca tinha sentido antes estava à flor da pele. Ela não sabia como definir o que era. Se assemelhava a um sentimento de proteção e de querer que sua pequena nascesse com o máximo de saúde. Ela sabia que o parto natural era o mais dolorido, mas era o mais saudável. A dor valia a pena.

A cada forte contração Ana empurrava com mais força! Ela sabia que tinha que empurrar, mas não lembrava se tinha ouvido alguém dizer isso ou se era por puro instinto. Seus olhos conseguiam ver as pessoas em sua volta falando mas ela não conseguia entender nada. Pareciam que estavam falando uma língua desconhecida para ela.

Outra contração! Ana dá um grito e aperta o lençol que está na cama com as mãos. Ele ouve vozes mais alegres na sala de parto. "Será que está saindo?", pensou Ana. As contrações estavam vindo em espaços de menos de 10 segundos e ela estava empurrando com toda a sua força.

Ana sentia uma pressão cada vez maior vindo lá de baixo. Quando conseguia olhar para baixo, via apenas suas pernas no ar. "Essas pernas são minhas?", questionou Ana antes de vir outra contração. Sua testa estava cheia de gotinhas de suor. Carlos estava fora do campo de visão de Ana mas queria que ele estivesse ali perto para segurar sua mão.

A pressão estava cada vez maior... a cada segundo, as contrações vinham mais fortes e menos espaçadas.

Ana empurrava, com todas as suas forças.

Respirava forte, sugando todo o ar que existisse ao seu redor.

Empurrava... empurrava...

Um grito!

...

Ana relaxou. A dor simplesmente desapareceu como um passe de mágica.

Então Ana arregala os olhos: um choro. Pela primeira vez Ana a vozinha de seu bebê. O estridente choro era a mais bela melodia que Ana jamais ouvira até então.

Ana queria ver sua filha o quanto antes, mas estava fraca demais até mesmo levantar a cabeça. Seu campo de visão não permitia ver ninguém. Então, atrás do lençol, entre as pernas levantadas Ana viu...

Seu bebê estava ali, à sua frente. Ana deu um soluço e quis chorar, mas não conseguiu. Estava fraca até para isso. "Meu Deus, que linda...", pensou. Então o médico a tirou do campo de visão. Ana quis falar para que colocassem ela mais perto de si mas ela pensou que talvez a fossem levar para fazer medições de peso e altura.

Viu Carlos, com os olhos marejados de emoção. Ela viu ele dizendo algo como "nossa filha nasceu!" e "eu gravei tudo", mas não tinha certeza. Então viu Carlos olhando para o lado de Ana. Esta rapidamente se virou e viu sua menina chegando nos braços de uma enfermeira. Mesmo com a máscara, a expressão no rosto demonstrava um claro sorriso no rosto. A enfermeira, delicadamente, colocou a filha de Ana sobre ela.


-- Oh, meu Deus... - as emoções dominaram Ana. Estivera com ela todo esse tempo e nunca sentira essa emoção antes. Esse primeiro toque, o primeiro contato pele a pele. Ana abraçou a sua filha, trazendo consigo alguns fios de medidas vitais. Ana beija a testinha de filha, ainda bem suja com sangue e um pouco de líquido amniótico. Ela olha para Carlos, que está com o rosto ao lado do de Ana e sussura:

-- Então amor, o que você disse que iria falar quando chegasse esse momento?

Ana respira fundo e solta vagarosamente. Toda a equipe médica estava ali, próximo e ficou observando a cena. Ana vagarosamente diz:

-- Bem vinda ao mundo, Alexandra, minha filha...

Ana sentiu um sentimento totalmente diferente que nunca havia sentido. Era uma forma de amor que ela nunca tinha experimentado antes. Para Ana, que estava em um turbilhão de pensamentos, esse sentimento acalmou todos e se elevou ao máximo. Ana estava, finalmente, sentindo o que era o amor de mãe.

* Alexandra nasceu *

Informações extras:
[1]: existe uma diferença entre a Ginecologia e a Obstetrícia. Ambos estão relacionados com a saúde da mulher, entretanto o primeiro está mais ligado à saúde do sistema reprodutor feminino e anexos, como o aparelho urinário (mulheres geralmente visitam o ginecologista quando estão com infecção urinária, por exemplo) e tratamentos de doenças sexualmente transmissíveis, as DST's. Já o obstetra é o médico responsável pela saúde da mulher e do feto (e recém-nascido) e dos cuidados pré e pós-natal. Geralmente os ginecologistas são obstetras visto que as mulheres confiam em um médico para tratar de um assunto tão íntimo como o sistema reprodutor e a própria reprodução.

[2]: nome comercial do medicamento.

[3]: o efeito placebo é o nome dado a efeitos terapêuticos que o paciente acredita estar tendo, mesmo consumindo um medicamento inerte ou quando toma o medicamente e ele tem uma ação imediata, mesmo ele tendo uma certa demora antes de começar a agir. Ele se baseia na crença do paciente em realmente achar que o produto vai funcionar, mesmo se for administrar algo inerte, como farinha ou água.

[4]: episiotomia é um procedimento cirúrgico onde o médico faz um corte lateral ao canal da vagina, próximo ao períneo (espaço entre a vagina e o ânus) afim de evitar que o próprio períneo rasgue durante a passagem do feto. Entretanto, esse procedimento é considerado um tanto polêmico visto que muitos médicos o fazem sem, muitas vezes, ser preciso realizar o procedimento. Entre os argumentos dos praticantes está a defesa da ideia que sem o procedimento cirúrgico, o canal vaginal pode ficar afrouxado, o que reduziria o prazer sexual do homem. Entretanto, isso é injustificado cientificamente.

Com imagem por ~hjri (primeira imagem) e =AlexandraGaudiosi (segunda imagem (nome é mera coincidência)) em seu deviantART.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Calendário Cósmico 07

A mágica do diagnóstico - post 2

Répteis não existem...