Arquivo Scientia - 05 de julho de 1687


É famosa a história de que Newton (na realidade, são famosas muitas histórias de Newton[1][2]) observara uma maçã cair de uma bela macieira em um fim de tarde no interior da Inglaterra. Ao mesmo tempo que a maçã ia de encontro ao solo, Newton vira a Lua boiando no fundo da paisagem e, de súbito, se indagou: hum, será que ambos os fenômenos estão relacionados?

Na realidade, muito provavelmente, esse acontecimento narrado acima nunca tenha ocorrido. Um dos registros mais antigos que se tem da história da maçã caindo (não tão rebuscada como meu delírio acima) é de 1752 e aparece em uma biografia de Newton feita por seu amigo William Stukeley[3]. Esse registro ocorrera quase 30 anos após a morte do cientista e provavelmente fora criado para dar um efeito alegórico ou romantizar a descoberta.

De fato, Newton é um divisor de águas entre o que sabíamos e o que sabemos sobre o funcionamento dos corpos aqui na Terra e no espaço. E o Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica (do latim[4], Princípios matemáticos da filosofia natural), ou simplesmente Principia é a obra-prima desse cientista, considerado por muitos (inclusive cientistas fora da física) como sendo o mais importante da história da Ciência. A apresentação da gravitação universal permite de fato relacionar que os mesmos eventos que ocorrem aqui na Terra podem ocorrer em qualquer lugar do espaço.

E como era o pensamento acerca da gravidade, um dos principais assuntos tratados no Principia? O mundo era visto de acordo com a Física Aristotélica que tinha explicações um tanto estranhas para o funcionamento do mundo (mas que faziam sentido na época). Para falar a verdade, uma das ideias que se arrastaram da Antiguidade até o fim do século XIX foi o éter. Entretanto, a Física Moderna acabou colocando o éter apenas como registro histórico de como ideias antigas (muito antigas) ainda podem ser derrubadas[5]. Já a Gravitação Aristotélica tinha a ideia de que os corpos (ou gases) caiam ou subiam já que eles preferiam estar nesses lugares. Para Aristóteles, a ideia de lugares naturais fazia sentido. Um arqueiro, ao atirar uma flecha, acumula energia dos músculos. Ao soltá-la, a flecha dispara no ar. A medida que ela atravessa o ar, ela vai perdendo essa energia que ganhou do arqueiro para o ar e vai indo em direção ao seu lugar natural, que seria o solo. Ao perder totalmente a energia que ganhou, a flecha deposita-se no solo, já que a Terra é seu lugar natural. A explicação, embora simplória, passou sem maiores problemas da Antiguidade até o fim da Idade Média[6].

Mas a explicação aristotélica recebia cada vez mais golpes à luz de novas descobertas e pensamentos. Newton percebeu que a gravidade não podia ser vista como uma preferência dos corpos a irem para algum lugar. Usando modelos geométricos e o desenvolvimento do Cálculo, o inglês nos mostrou que a gravidade é uma interação entre os corpos (com massa). A maçã caindo na Terra mostra que a massa 'Terra' possui um campo gravitacional à sua volta que atrai a massa 'maçã'. Entretanto, a massa 'maçã' também é um corpo com massa que, por sua vez, possui um campo gravitacional. De certa forma, a maçã está atraindo a Terra também. SÓ QUE a Terra tem 5,972x10^24kg enquanto uma maçã tem, em média, 0,1kg. Ou seja, Newton percebeu que a gravidade é diretamente proporcional ao tamanho da massa (o popular, e errado, peso[7]). Massa maior infere em gravidade maior.

Outra questão importante observada por Newton em seus cálculos é que a ação da gravidade decai quanto mais um corpo estiver distante do outro. Para ser mais específico, a ação da gravidade cai ao quadrado da distância. Isso, de acordo com os cálculos, implica que a interação entre os corpos nunca será igual a zero. Poderá ser muito, mas muito baixa, quase nula, mas não igual a zero. Estamos, eu e vocês, sofrendo interação gravitacional com Marte, com a Lua e com o Sol mas, por estarmos na Terra, sentimos muito mais a interação gravitacional da Terra do que com os demais corpos celestes. Entretanto, mesmo distantes, a Lua e o Sol se fazem sentir, seja com o efeito de maré ou o movimento de translação[8].

O Principia aborda outros temas além da gravidade. Entretanto, a nova maneira de ver a gravidade fez de Newton ser considerado o 'pai da Física Clássica'. Suas ideias acerca do funcionamento do cosmos perduraram até o começo do século XX, quando um jovem alemão virou novamente a mesa da Física, apresentando uma nova maneira de ver o funcionamento do Universo. A mecânica einsteniana consegue explicar fenômenos observados que Newton jamais teria imaginado. Hoje, o trabalho de Newton é uma relíquia histórica e nos lembra da capacidade intelectual dos grandes gênios da Humanidade de conseguir expandir observação e cálculo para além do que vemos, alcançando todo o cosmo.

Informações adicionais:
[1]: acredito que a maioria dos leitores tenham conhecimento de que Sir Newton não fora muito chegado a uma vida social ativa. Isso se mostra na divulgação de sua principal obra, que fora feita principalmente por entusiastas da obra, que a espalharam pela Europa, e não pelo próprio autor. Além disso, é sabido que Newton não casara e alguns biógrafos afirmam que ele nunca ficara com uma mulher em vida. Embora seja feio fofocar da vida alheia (ainda mais quando o alvo da fofoca não está aqui para se defender), é interessante observar que a vida reclusa de Newton tenha dado tempo para pensar sobre o funcionamento do mundo.

[2]: é sabido também que, em 1666, o Trinity College, em Cambridge ficou fechado devido a peste negra, o forçando a viver com a mãe em uma fazenda. Esse ano foi um dos mais produtivos de Newton, culminando no desenvolvimento da lei da gravitação universal e alguns estudos com a luz. Fala-se que foi nesse ano que ele observou que uma maçã caíra da macieira e o levou a desenvolver o estudo com a gravidade.

[3]: o amigo de Newton foi um antiquário inglês e foi o pioneiro na investigação arqueológica de Stonehenge, o conhecido monumento de pedras. Parece que pessoas influentes tem amigos influentes. =P

[4]: o latim era o que podemos considerar o 'inglês' de hoje. Enquanto o inglês se torna cada vez mais imprescindível no mundo atual, a língua científica e intelectual da época era o latim. Pouco a pouco o uso do latim ficou sendo cada vez mais restrito ao clero (sobretudo no Vaticano, que a usa até hoje) e aos meios científicos (expliquei um pouco sobre o latim em uma série de três postagens sobre o uso nas ciências), o francês começou ganhar os ares da vez. Após a Revolução Francesa e as ideias iluministas vindas da França (sem contar o impacto que a França tinha no mundo, principalmente a música e a moda) o idioma começou a ser cada vez mais usado por todo o mundo, se tornando um idioma obrigatório entre os intelectuais. O francês perdurou até o fim do século XIX, quando, o avanço econômico americano e inglês, a abertura de novos mercados e, por fim, as duas Grandes Guerras Mundiais, forçaram o uso cada vez maior do inglês, que vemos até hoje. Atualmente, o inglês tem um forte adversário: o mandarim (o chinês tradicional). A abertura do mercado chinês ao mundo e a mão de obra barata acabaram chamando a atenção de todos para fechar cada vez mais negócios nesse país, o que faz a necessidade de aprender esse idioma. Entretanto, o inglês continua forte e considerado o principal idioma da comunidade científica.

[5]: os cientistas naturais (os físicos) não concebiam a ideia de que existia o vazio (uma região do espaço que nada contém). Para eles, o espaço (todo e qualquer espaço) deveria estar preenchido por alguma coisa. Essa coisa era o éter. Assim, a luz tinha um meio material para se propagar, assim como o som se utiliza do ar para se propagar. Entretanto, o éter era um meio muito específico, visto que sua interação se dava praticamente com a luz, tendo efeito nulo em relação aos planetas, estrelas e outros objetos cósmicos. A hipótese do éter foi derrubada no começo do século XX, quando os cientistas entenderam a dualidade da luz, que pode ser estudada tanto sob forma ondulatória, como sob forma particulada.

[6]: a física aristotélica foi, ao longo dos séculos, recebendo mais e mais pancada. Para Aristóteles, os corpos celestes eram esferas perfeitas e incorruptíveis e o movimento planetário era perfeitamente circular. Galileu Galilei (1564-1642) foi um dos primeiros a derrubar essa ideia de forma experimental ao observar a Lua com um telescópio e ver que a Lua era totalmente irregular, cheia de crateras. Já Johannes Kepler (1571-1630) demonstrou teoricamente que o movimento dos planetas era elíptico, e não circular. Esse movimento elíptico foi abordado também na terceira parte do Principia. Já a gravidade ainda não tinha recebido um golpe tão profundo até a publicação do Principia.

[7]: um erro comum que existe é relacionar que peso = massa. O peso é a ação da gravidade sobre a massa. Aqui na Terra, a massa que forma o que chamamos de 'eu' (o Wesley, o carinha da foto no lado), pesa 80kg (mais ou menos, mais ou menos). Na Lua, eu teria um pouco mais de 13kg. Isso acontece pois a Lua tem 1/6 da gravidade da Terra (ela é mais leve que a Terra: tem "apenas" 7,349x10^22). Minha massa continua a mesma, independente do lugar onde eu esteja pesando. Ou seja, antes de vir com aquela piadinha de mudar para Lua por causa do peso, a piada não tem graça (ela não é cientificamente válida). =P

[8]: não, astrologia não poderá usar essa desculpa de que mesmo distantes, os corpos celestes podem interagir com a gente. A interação é puramente gravitacional e os efeitos desses corpos distantes (mesmo o Sol, nesse quesito) são praticamente nulos.

P.s.: tive um certo receio em colocar a frase de Newton que está na imagem que abre a postagem. Embora seja de edição coletiva, a Wikipédia em inglês é um bom lugar para consulta de informações diversas. Um dos braços Wiki é o Wikiquote, que reúne citações célebres de personalidades científicas, artísticas e outros. A versão em português do Wikiquote apresenta a tal citação "o que sabemos é uma gota, o que ignoramos é um oceano". Entretanto, até o presente momento (escrevi no fim de junho) o Wikiquote em inglês não tinha essa frase (que seria, em inglês “What we know is a drop, what we don’t know is an ocean.”). Isso já disparou o alarme de que Sir Newton não tivesse realmente dito tal frase e a estavam atribuindo ao inglês. Entretanto, diversos sites apontavam que a frase fora dita (ou escrita) por Isaac Newton (tanto em inglês como em português). Encontrei, inclusive, a frase no volume 114 de Outubro de 2001 do Journal of Cell Science. Mas como eu disse, não encontrei nenhum site especializado (ao menos em minhas buscas) que corrobore que tal frase foi dita por Newton.

Foram usados na montagem as seguintes imagens, tiradas aqui e aqui. Montagem feita por mim, protegida por CC. Para mais informações de imagens, veja a página especial do Arquivo Scientia.

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