O que sabemos sobre o Ebola?

Essa é a primeira de um conjunto de postagens sobre o ebola.

Segunda postagem temática:

Terceira postagem temática:

Para os amigos e colegas leitores que acompanham as notícias de ciências na página do blog no Facebook (e por outros meios) já sabem do surto de ebola que está atacando alguns países da África desde o começo do ano. O último boletim da Organização Mundial da Saúde (OMS) registra 888 casos e 539 mortes, ou seja, mais de 61% de vítimas fatais até agora[1], afetando três países africanos: Guiné, Libéria e Serra Leoa.

Países da África afetados até o momento com surtos de ebola. Modificado a partir de Google Maps.

A febre hemorrágica ebola (FHE, ou apenas ebola) ser conhecido das pessoas principalmente pelo surto que ocorreu em 1976 no sul do Sudão e no antigo Zaire (hoje, a República Democrática do Congo). Entretanto, a doença sempre esteve rondando as populações africanas, ceifando dezenas de vidas a cada ano. Entretanto, no começo de 2014, casos fora do comum deflagaram o surto que começou em Guiné e rapidamente se espalharam para outros dois países. A organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) diz que os trabalhos dos médicos no local está no limite (até o momento, a organização é a única a estar trabalhando no local da doença) e necessita da intervenção rápida dos governos locais e da OMS.

O surto foi informado no Twitter oficial da
OMS em março de 2014. Compartilhei a
notícia na página do blog no Facebook.
O primeiro grande alerta ao público do surto de ebola veio através de um tweet da OMS no dia 23 de março desse ano. A partir de então, a mídia internacional começou a cobrir o fato. Entretanto, mesmo sabendo da periculosidade da doença, a novas gerações (que me inclui) não viveram esse temor que tais doenças causam (como a varíola, por exemplo, que foi a primeira doença erradicada pelo homem[2]). Embora para o resto do mundo, o risco de uma epidemia seja baixo (todos os casos de ebola humano até hoje aconteceram na África[3]), é importante sabermos como funciona a doença e do porquê ela é tão temida pelos médicos.

Imagem de microscopia eletrônica do ebola.
O ebola é um vírus da família Filoviridae que apresenta seis cepas diferentes[4], todos com risco 4 de patogenicidade (onde o risco máximo é 4). Isso significa que são de fácil propagação e não existem medidas de prevenção e cura disponíveis até o momento.

Acredita-se que morcegos frugívoros sejam os hospedeiros naturais do vírus ebola, embora alguns animais domésticos, como porcos e cães podem ser hospedeiros acidentais, além de primatas, onde algumas cepas são altamente letais. A taxa de fatalidade da doença nos humanos chega a 90%, como registrado no surto no Zaire em meados de 1970. E, no começo do entendimento sobre a doença e tratamento dos doentes, médicos e pesquisadores se valiam de um reforçado uso de equipamentos de proteção individual, afim de evitar qualquer contaminação por contato direto ou pelo ar. Entretanto, sabemos hoje que o principal meio de transmissão da doença se dá por meio de contato direto com sangue, tecidos ou sêmen contaminados[5]. Não foi comprovado que a transmissão aérea (com o vírus dispersado no ar juntamente com gotículas de líquido) seja eficiente na transmissão entre humanos, ele foi considerado uma fonte importante de transmissão entre macacos. Veja a atualização *1* no final da postagem, antes das notas de rodapé.

O período de incubação do vírus pode variar de dois dias a três semanas e os primeiros sintomas podem ser facilmente confundidos com gripe, malária, dengue, febre amarela e febre tifoide, o que acaba complicando o tratamento a medida que a doença avança. Os sintomas mais comuns são febre alta, diarreia, dores musculares e vômito. As funções hepáticas e renais também são comprometidas em questão de poucos dias, além de alguns casos avançarem para uma hemorragia (interna ou externa). Poucos dias após os primeiros sintomas o paciente vem a óbito.

Um dos motivos dos surtos na África podem ser respondidos principalmente a alguns hábitos culturais dos povos que lá vivem. Entre tais costumes, os familiares lavam os corpos dos mortos. É sabido que o vírus permanece ativo nos fluidos corporais e tecidos mesmo a pessoa (ou animal) estarem mortos. Como a lavagem dos corpos é feita sem nenhuma proteção (por parte de quem lava), a doença se espalha facilmente. Além disso, o contato com carne de caça e seu preparo rudimentar é uma das formas de transmissão do ebola mais comuns.

O vírus causador do ebola é o que os virologistas chamam de vírus (-)ssRNA. Isso significa que ele é um vírus de RNA de cadeia simples no sentido negativo. Para que o vírus se multiplique, ele precisa que a informação contida em seu material genético (RNA ou DNA) seja lida pelo maquinário da célula (já que ele por si não é capaz de fazê-lo). Acredito ser importante abrir um parênteses para explicar esse mecanismo melhor.

[parenteses mode on]
A célula (humana, ou de qualquer outro animal ou planta) para produzir proteínas e outras estruturas importantes para a própria célula a faz se utilizando de um molde. O responsável principal para montar essas proteínas são são os ribossomos. E os ribossomos o fazem mediante instrução do mRNA (RNA mensageiro). O mRNA nada mais é do que uma versão 'cópia' da mensagem original, que fica dentro do núcleo da célula, o DNA. Ou seja, o DNA é lido e gerado uma cópia, que é o mRNA. Esse RNA mensageiro sai do núcleo (com a mensagem do que precisa ser feito) e é traduzido no ribossomo. Lá ocorre a formação de proteínas e tudo que for necessário.
O desenho ilustra o processo de replicação viral, mostrando a relação com a síntese de proteínas normais
da célula. Em 'A1', o DNA no interior do núcleo é aberto e lido (transcrição), gerando uma fita de mRNA
(RNA mensageiro), que sairá do núcleo celular. Em 'A2', o mRNA sofre o processo de tradução no ribossomo,
onde a fita será lida e interpretada, relacionando a informação para a construção da proteína de interesse.
As proteínas são grandes cadeias de aminoácidos (AA). Esses AA são transportados para o ribossomo
por intermédio do tRNA (RNA transportador). Os vírus, de forma geral, se utilizam do mesmo mecanismo
descrito em 'A2'. Entretanto, o vírus do ebola tem uma fita de RNA no sentido negativo (para o processo de
tradução visto em 'A2' ou 'B2' é preciso uma fita no sentido positivo), fazendo-se necessário corrigir essa fita.
O vírus do ebola lança dentro da célula (em 'B1'), além do RNA sentido negativo, moléculas que servirão para
corrigir o sentido da fita (para positivo). Feito isso, a fita de RNA positiva será traduzida no ribossomo (em 'B2').
Assim, a célula acaba servindo seu maquinário celular para a replicação viral. Os novos vírus saem da
célula capazes de infectar novas células, reiniciando o ciclo.

Existem vários tipos de vírus (os vírus de DNA e RNA, de cadeia simples e dupla). Vamos nos concentrar no do ebola, que é RNA negativo de cadeia simples. O mRNA é uma RNA de cadeia simples, mas de sentido positivo, ou seja, a fita está pronta para ser lida no ribossomo celular. Alguns vírus, como o da febre amarela e da dengue, são (+)ssRNA e se parecem muito com uma mRNA. Dentro da célula, o (+)ssRNA desses vírus é lido pelo ribossomo sem problemas, produzindo novos vírus. Já os (-)ssRNA precisam ser transcritos para o sentido positivo para parecerem com um mRNA e, assim, produzirem novos vírus. Para conseguirem isso, é preciso de uma enzima chamada RNA-polimerase RNA-dependente. Curiosamente, as células animais não produzem essa enzima. Para contornar esse problema, a maioria desses vírus (incluindo o ebola) possuem essa enzima empacotada junto de si prontas para realizarem esse procedimento e "corrigir" o RNA viral de modo a ser lido pela célula hospedeira.
[parenteses mode off]

Infelizmente não existe tratamento ou cura disponíveis até o momento. Com isso, os médicos se concentram em repor líquido e tomar medidas paliativas, como controle da febre e dores e esperar o próprio organismo se defender da doença. Infelizmente, na maioria dos casos, o indivíduo com ebola irá morrer. A taxa de mortes/casos é, em média, de 72%. O surto com menor porcentagem de mortes foi em 2007/2008 em Uganda, com 116 casos e 39 mortes (34%) e o maior foi em 2002/2003 na Rep. Dem. Congo e Gabão, com 143 casos e 128 mortes (90%). Entretanto, mesmo com uma menor taxa de mortes por caso nesse surto de 2014, o número de casos é o maior quando comparados com os demais surtos já registrados. Mesmo considerando apenas os casos confirmados (626)[1], ele é muito superior aos 425 registrados em 2000/2001 registrados em Uganda (53% dos casos levaram a óbito nesse surto).

O surto é declarado encerrado quando não há nenhuma nova notificação na região afetada por 42 dias.

É necessário, visto a gravidade da doença, uma ação rápida por parte da OMS e dos governos locais (até mesmo de outros países) em criar reforços para conter a doença de forma mais rápida possível para, assim, evitar que a doença se espalhe ainda mais, afetando outros países e ceifando mais vidas. A OMS recomenda evitar visitar esses países durante o período de surto da doença.

Ficaremos de olho e, a vista de qualquer nova informação relevante, essa postagem poderá ser atualizada (novas atualizações serão informadas na página do blog no Facebook).

Atualização:
Veja todas as atualizações em uma nova postagem, destinado a novas notícias sobre o assunto, aqui.

Rodapé:
[1]: os dados são de 08 de julho de 2014 (liberados pela OMS dia 10), acessado no dia 11 de julho de 2014 e publicado no mesmo dia.

[2]: a OMS declarou a doença completamente erradicada em 1979. Foi (e é) considerada um dos maiores feitos do homem, ao reunir recursos e conhecimento científico nessa nobríssima causa. Para se ter uma ideia, estima-se que apenas no século XX, a varíola tenha levado de 300 a 500 milhões de vidas. Recentemente, em 2011, a OMS declarou a peste bovina como a segunda doença a ser erradicada pelo homem.

[3]: existem casos subclínicos relatados nos Estados Unidos e Filipinas, da cepa Reston (uma das seis cepas[4] (variedades levemente diferentes do ancestral) conhecidas). A cepa, é inofensiva para os humanos, mas letal para os humanos. Acredita-se que macacos africanos, contaminados com a doença, tenham sido transferidos para esses locais e levado a doença consigo.

[4]: As seis cepas são conhecidas como vírus Bundibugyo (BDBV), vírus Ebola (EBOV), vírus Sudão (SUDV), vírus Taï (TAFV) e o vírus Reston (RESTV). O sexto vírus, o Guinean EBOV, foi apresentado recentemente a comunidade científica (DUDAS e RAMBAUT, 2014) e acredita-se ser ele o responsável pelo surto atual.

[5]: um estudo descreveu o caso de um homem que tinha formas virais do ebola no sêmen mesmo após três meses sido diagnosticado com a doença.

Imagem do mapa feita por mim, protegida por CC. Imagem do vírus ebola por Wikipedia. Desenho da replicação viral feito por mim, protegido por CC.
Com informações de WHO, MSF, MSFWikipedia, G1, FioCruz e:
CASILLAS, A. M.; NYAMATHI, A. M.; SOSA, A.; WILDER, C. L.; SANDS, H. A current review of Ebola virus: pathogenesis, clinical presentation, and diagnostic assessment. Biological Research for Nursing. v. 4, n. 4, p. 268-275, 2003.
DUDAS, G.; RAMBAUT, A. Phylogenetic analysis of Guinea 2014 EBOV Ebolavirus outbreak. PLOS Current Outbreaks. ed. 1, 2014.
POURRUT, X.; KUMULUNGUI, B.; WITTMANN, T.; MOUSSAVOU, G.; DÉLICAT, A.; YABA, P.; NKOGHE, D.; GONZALEZ, J-P.; LEROY, E. M. The natural history of Ebola virus in Africa. Microbes and Infection. v. 7, p. 1005-1014. 2005.
Saint Louis University. "How Poxviruses Such As Smallpox Evade The Immune System." ScienceDaily. www.sciencedaily.com/releases/2008/01/080131122956.htm (acessado em July 8, 2014).
WEINGARTL, H. M.; NFON, C.; KOBINGER, G. Review of Ebola virus infections in domestic animals. In: Vaccines and diagnostics for transboundary animal diseases. ROTH, J. A.; RICHT, J. A.; MOROZOV, I. A. (eds.) Basel, Kargel, 2013. p. 211-218.

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