Doença de Chagas e transplantes

Trypanosoma cruzi em um esfregaço sanguíneo. Os círculos rosas claros são hemácias.

Spoiler 1: sim, transplante de órgãos pode levar à doença de Chagas.

Spoiler 2: e nem sempre é por causa do órgão transplantado.

Espero ter chamado a atenção do querido leitor para esse assunto que, até pouco tempo atrás, desconhecia por completo. Entrei recentemente no mestrado e minha pesquisa consiste em detectar o Trypanosoma cruzi, o protozoário causador da doença de Chagas em primatas do zoológico de Bauru, no interior paulista. Lê-se e escreve-se muito durante a elaboração do projeto, com os textos indo e vindo por e-mail o tempo todo (entre a minha orientadora e eu). Soma-se a isso as disciplinas que cursamos juntamente com o desenvolvimento do projeto. Nesses momentos, descobrimos o quanto a natureza é interessante e que estamos sempre aprendendo[1]. Vamos aprender um pouquinho mais hoje?

Chagas, um clássico da Sessão da Tarde
A tripanossomíase americana ou mais conhecido como doença de Chagas, é uma das doenças tropicais mais comuns das Américas (ocorre, de forma natural, apenas nas Américas, desde o sul dos Estados Unidos até as porções mais baixas da Argentina). O ciclo da doença, desde as fases do T. cruzi no vetor e no hospedeiro humano, onde causa a doença é considerado um dos melhores feitos em doença tropical do século XX. A descoberta da doença fez Carlos Chagas ser indicado duas vezes ao prêmio Nobel (em 1913 e 1921), um dos mais importantes do mundo. Infelizmente, por grupos que não acreditavam na existência da tripanossomíase, Chagas nunca fora laureado.

Triatoma infestans. Clique para ampliar.
Chagas publicou, em 1909, o artigo que apresentou o T. cruzi ao mundo. Ao estudar a pequena Berenice, descobriu formas de um parasita diferente em seu sangue. Ao ir mais a fundo, entendeu todo o ciclo da doença no humano e o desenvolvimento da doença e como ocorria a transmissão, que é por meio do barbeiro[2]. O mais curioso é que não é a picada do inseto que transmite o protozoário[3]. Durante sua 'estadia' no inseto triatomíneo, os protozoários se modificam e se multiplicam. Todo esse processo ocorre no trato digestivo do animal. Durante a picada no humano (ou outro mamífero), o barbeiro acaba defecando próximo à área da picada. Como a picada acaba coçando, acaba-se levando esse pequeno 'cocozinho' próximo à entrada da pele onde ocorreu a picada. Desse modo o parasita acaba ganhando a corrente sanguínea.

Essa forma, a mais conhecida, é a mais comum para a transmissão da doença de Chagas. Entretanto, o parasita acabou descobrindo novas formas de estar se espalhando. E com ajuda humana.

Pegando carona
O transplante é uma realidade no mundo todo. Dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) de 2013 apontam que o Brasil é o segundo país do mundo em número de transplantes renais e hepáticos, atrás apenas dos Estados Unidos. No mundo, mais de 70 mil órgãos são transplantados anualmente. Diversas são as causas para o transplantes, desde doenças a acidentes, que comprometeram o órgão em questão de modo que ele pare de desempenhar suas funções normais e/ou levando em risco a vida do paciente. Órgãos de doadores vivos e aqueles que já morreram (acidentes, morte cerebral, outros casos) são utilizados para aumentar a sobrevida dos pacientes que precisam.

É sabido, faz vários anos, que doenças podem pegar carona com o órgão transplantado. O doador, com alguma doença, acabou transmitindo a doença para o receptor do órgão. Embora não seja muito citado, exames do doador do órgão para detecção de doenças acompanham àqueles que são usados para evitar a rejeição do órgão[5]. Entretanto, às vezes, mesmo conhecendo alguma doença prévia do doador, a necessidade de transplante é mais urgente e se faz necessário arriscar nesses casos.

No trabalho de Huprikar e colegas, foi analisado a transmissão de T. cruzi de doadores para receptores nos Estados Unidos entre 2001, quando o primeiro caso foi identificado no país até 2011. Nesse trabalho, os autores já apontam que o problema atual é que existem mais pacientes esperando por um órgão do que doadores para supri-los. A doação de órgãos e sangue é cheia de restrições (algumas um tanto estranhas no mundo atual) e é preciso expandir o número de potenciais doadores, afim de aliviar a pressão de pacientes que precisam urgentemente de transplantes.

Com isso, alguns doadores infelizmente podem estar com a forma indeterminada da doença de Chagas e podem acabar infectando os receptores com T. cruzi.

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A forma indeterminada da doença é a mais comum, englobando cerca de 90% dos pacientes. Nesses casos, o protozoário se 'enclausura' dentro de algum tecido, como coração, fígado e até mesmo cérebro e rins, e ficam ali, crescendo bem aos pouquinhos e sem chamar a atenção do sistema imune. Pacientes nessas condições podem apresentar sintomas mais de 30, 35 anos após a infecção. Cardiopatias (doenças do coração) como cardiomegalia (aumento do tamanho do coração) são características clássicas da doença em estágio crônico.
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O estudo em questão acompanhou pacientes que receberam órgãos de doadores latinos. Antes chamem os pesquisadores de preconceituosos, é bom lembrar que os casos de doenças de Chagas ocorrem em toda a América Latina. São raros os casos de transmissão pelo triatomíneo nos Estados Unidos. Acredita-se que pelo menos 300 mil latinos que moram nos EUA podem estar com doença de Chagas. São esses latinos que ajudam os bancos de sangue com doações e se oferecem como doadores de órgãos. Portanto, faz sentido o estudo acompanhar esses casos.

Dos 32 pacientes que receberam órgãos, nove tiveram confirmação de transmissão de Chagas. O mais interessante é que de quatro pacientes que receberam um coração, três morreram. Os autores acreditam que problemas cardíacos, por serem os mais comuns entre chagásicos, poderiam ter agravado a situação dos pacientes pós-transplantados, levando-os à morte. Essa complicação até mesmo leva os autores a sugerir a não usar o coração de doadores chagásicos em transplantes pois a decisão poderá ser fatal.

Um dos motivos mais prováveis das complicações de Chagas em receptores é que, com o transplante do órgão, sempre é preciso entrar com medicamentos imunossupressores, ou seja, medicamentos que reduzem a atividade do sistema imune (justamente para evitar do corpo atacar o novo órgão[5]). Com isso, o protozoário, que estava nos tecidos dos órgãos transplantados veem uma chance de se multiplicar, levando a destruição dos tecidos adjacentes, podendo levar a complicações e morte.

Isso pode explicar o motivo de alguns receptores de órgãos começarem a desenvolver sintomas de doença de Chagas mesmo o órgão transplantado estar limpo. O receptor já estava doente. A administração de imunossupressor acaba criando um ambiente propício para a reativação das atividades do protozoário, voltando a doença.

Os trabalhos dos últimos anos apontam que é preciso fazer um levantamento cada vez mais completo não apenas do doador, mas também do receptor e, quando possível, administrar medicamentos que retardem a ação do protozoário e permitam que o receptor possa aproveitar a nova etapa da vida, sem esses problemas.

Rodapé:
[1]: tenho em mente que nunca chegará o dia (tanto para mim como acho que até para a humanidade) em que subiremos em um pedestal e gritaremos a todo pulmões: Eu sei tudo! [imaginação mode on] Em seguida, alguém puxa de leve a manga da camiseta desse cidadão 'sabichão' e diz: sabia que apenas 10% de você é, de fato, você? [imaginação mode off] Mente aberta, o tempo todo. =D

[2]: o inseto tem esse nome provavelmente devido ao hábito de sempre picar o rosto das pessoas, geralmente na região da barba. Daí o nome. Em inglês, ele recebe o simpático nome de 'kissing bug'. Essa região [do rosto] é a mais escolhida pelo simples fato do inseto picar a pessoa sempre à noite e, geralmente, o rosto é a área descoberta. O sinal de Romanã[4] é um dos sintomas mais característicos da doença de Chagas, que se forma na região da picada do inseto.

[3]: a maioria dos parasitas que necessitam de um vetor, como a malária, leishmaniose, entre outros, são inoculados na vítima pela diretamente pela picada do inseto (no caso, o mosquito). Como a glândula salivar desses insetos possuem toxinas anestésicas (que acabam causando a coceira posteriormente) que são inoculadas na vítima, os parasitas se aproveitam desse mecanismo para adentrar no hospedeiro vertebrado (nós ou outros mamíferos, por exemplo). Como visto no texto, o T. cruzi usa uma tática diferente, mas quase igualmente eficaz.

[4]: essa imagem é clássica nas aulas de biologia sobre o assunto. Clássica.

[5]: a rejeição, de forma simples, é quando o organismo da pessoa que recebem o órgão não reconhece aquele órgão como sendo próprio do organismo (pois, de fato, não o é). Ou seja, o sistema imune 'acredita' que aquilo é algo estranho e deve ser combatido e o sistema imune o ataca com força, destruindo e inutilizando o órgão transplantado. De uma forma um pouco semelhante, a doença autoimune funciona com o mesmo pensamento. Nesse caso, o sistema imune acha que algum tecido ou órgão próprio da pessoa é um agente estranho e tenta combate-lo. Veja nessa postagem que fiz sobre o assunto de autoimunidade.

Com informações de:
APTO. Registro Brasileiro de Transplantes. Disponível aqui. 2013.
FISHMAN, J., Grossi, P. Donor-derived infection - the challenge for transplant safety. Nature Reviews Nephrology. 10, 663–672, 2014.
HUPRIKAR, S., Bosserman, E., Patel, G., Moore, A., Pinney, S., Anyanwu, A., Neofytos, D., Ketterer, D., Striker, R., Silveira, F., Qvarnstrom, Y., Steurer, F., Herwaldt, B., Montgomery, S. Donor-derived Trypanosoma cruzi infection in solid organ recipients in the United States, 2001-2011. Am J Transplant, 13, 2418-2425, 2013.
NÁQUIRA, C., Cabrera, R. Breve reseña histórica de la enfermedad de Chagas, a cien años de su descubrimiento y situación actual em el Perú. Ver. Peru. Med. Exp. Salud Publica, 26, 494-504, 2009.
Imagem que abre a postagem aqui. Imagem do barbeiro obtida aqui.

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