A mágica do diagnóstico - post 1


Todo mundo já ficou doente alguma vez na vida. Se você mora nas regiões mais ao sul do Brasil, provavelmente já teve alguns episódios de gripe ou resfriado. Se você mora na região norte do país, talvez tenha tido (ou conhecido alguém que tenha) malária. Esse ano o Brasil teve uma explosão nos casos de dengue[1], além dos estreantes zika e chikungunya, o que aumentou as chances dos brasileiros em terem entrado em contato com essas doenças.

Na maioria dos casos, o médico não irá se basear apenas no diagnóstico clínico para determinar qual doença está acometendo o paciente. Mesmo em áreas endêmicas a uma doença, pessoas que vivem nessa região podem contrair outras doenças (até mesmo com sintomas parecidos)[2]. Com isso, o laboratório acaba sendo um componente importante para nortear ou finalizar o diagnóstico médico sobre a doença do paciente. Assim, o médico poderá saber qual medicamento ou procedimento ele poderá tomar com maior segurança e com maior grau de sucesso.

Mas o que o laboratório exatamente faz? Que mágica acontece quando se deixa um pouquinho de nós lá (sangue, urina, fezes)? O que eles dizem é 100% confiável?

Originalmente pensei em contar um pouquinho sobre alguns testes laboratoriais que estou mais acostumado (no meu caso, que trabalho com detecção de doença de Chagas em primatas de um zoológico do interior paulista). Mas pensei que seria um pouco vago para alguns leitores. Além disso, existem inúmeros tipos de exames que podem ser feitos[3] que conheço muito pouco ou que nem mesmo ouvi falar. Entretanto, alguns testes são mais conhecidos e diversos laboratórios realizam esse tipo de procedimento.

Irei, ao longo dessas postagens, apresentar um pouquinho sobre alguns testes feitos em laboratórios com o objetivo de detectar doenças. Mas, para saber como é feito esses exames, é preciso entender como esses exames funcionam (e, muitas vezes, é preciso compreender sobre como o nosso corpo funciona e como o agente causador da doença funciona). Apenas assim podemos confiar nos resultados que obtemos deles.

Existem diversos tipos de exames: parasitológicos; sorológicos; moleculares; bioquímicos; de imagem; e tantos outros que não tenho como falar de todos. Portanto, irei focar em alguns que tenho mais intimidade (que fiz enquanto estava na faculdade ou para o meu mestrado). Convido meus colegas blogueiros de ciências e até mesmo leitores que sabem mais sobre técnicas que não foram abordadas aqui nessa série de postagens a escreverem sobre o assunto (em seus próprios blogs ou usando esse espaço) para, assim, aumentar o leque de testes abordados para que mais mais pessoas conheçam como a ciência teórica funciona na prática de bancada.

Como funcionamos?
Para entender como funciona alguns exames, é preciso antes entender como funciona o nosso corpo e como funciona algumas doenças.

Quando um organismo estranho invade nosso corpo, o sistema de defesa começa a montar uma resposta contra àquele antígeno, as moléculas do patógeno (seja vírus, bactéria, protozoário, fungo). O sistema imune é diferenciado em duas partes: o inato e o adaptativo (ou adquirido). O sistema inato é o mais primitivo, existente em diversos grupos de animais. Ele reage a presença de qualquer antígeno que entre no corpo após passar pelas barreiras existentes (pele, lágrimas, suor, gorduras e ácidos estomacais). A imagem abaixo simplifica o processo de imunidade inata. Lembrando que o infográfico está muito simplificado, visto que diversas outras células, como as produtoras de histaminas[4] e o sistema complemento que ajudam na resposta imune não foram consideradas nessa explicação.

Infográfica apresentando o sistema imune inato. Nem todos os processos que ocorrem são apresentados nesse
esquema. Note que as células dendríticas apresentam antígenos para a construção da resposta imune
adaptativa, explicado no infográfico abaixo. Clique na imagem para ampliar.

Podemos ver que, no infográfico acima, as células dendríticas (DCs) apresentam antígenos para as células de defesa, que leva à resposta adaptativo. Embora as DCs não sejam as únicas a fazerem isso (os macrófagos e até mesmo células epiteliais possam fazê-lo), as DCs são as mais especializadas nesse tipo de apresentação de antígenos. Ao capturarem um patógeno, as DCs entram nos vasos linfáticos e vão em direção ao linfonodo mais próximo. Durante esse percurso as DCs digerem os patógenos e os antígenos que são formados esses patógenos são apresentados na superfície externa de sua membrana plasmática. Esse antígeno é apresentado juntamente com um complexo principal de histocompatibilidade (MHC) que, juntamente com outras moléculas de superfície entram em contato com as células T imaturas que estão nos linfonodos. Ao reconhecer esse complexo MHC + antígenos, via receptor de células T (TCR, na imagem abaixo), a célula amadurece e vira uma célula T efetora, que irá desempenhar funções de acordo com o estímulo vindo da MHC, como mostra a imagem abaixo.

Infográfico apresentando o sistema imune adaptativo e como ocorre a ativação dos linfócitos T e B.
Na imagem, TCR: receptor de célula T; MHC: complexo principal de histocompatibilidade.
Clique na imagem para ampliar.

As células B também participam da resposta imune, produzindo os famosos anticorpos, que são imunoglobulinas que permitem sinalizar o patógeno para que macrófagos realizem seu trabalho de fagocitar o agente estranho. Além disso, participam dos processos do sistema complemento, uma via bioquímica que permite destruir o patógeno sem auxílio de outras células de defesa.

O sistema imune adaptativo é o mais refinado, encontrado apenas nos vertebrados. Os peixes, animais menos derivados evolutivamente, possuem apenas um tipo de imunoglobulina, o IgG. Os mamíferos (incluindo nós), possuem cinco[5][6]. Com isso, os animais não dependiam mais apenas das informações genéticas de defesa. O organismo pode moldar a defesa de acordo com o momento de vida, construindo respostas específicas para o patógeno que infecta no momento.

Após a passagem da doença, os animais ficam com o que chamamos de 'cicatriz imunológica', que é a memória imunológica. Essa memória imunológica é feita por algumas linhagens de células B que não se transformaram em plasmócitos e se transformaram em células B de memória. Isso é extremamente útil para que, quando o mesmo patógeno voltar a atacar o organismo, não é preciso mais reiniciar toda a resposta imune, basta apenas um grupo das células B de memória produzirem novos anticorpos.

É desse jeito que a vacina funciona: apresentamos o antígeno inerte para o corpo e o sistema de defesa monta a resposta. Quando o corpo for realmente atacado pelo patógeno, o organismo já tem tudo pronto e simplesmente ataca o agente infeccioso com muito mais facilidade.

E é essa memória imunológica que usamos para fazer um dos testes mais conhecidos para detecção de doenças: os exames sorológicos.

Mas esse assunto fica para a próxima postagem. Lá aprenderemos como os cientistas usam os anticorpos produzidos por nós para saber se já 'pegamos' alguma coisa. Até lá!

Rodapé:
[1]: todo paciente que chega à unidade de saúde suspeito de dengue tem uma amostra de sangue encaminhado para teste laboratorial. Entretanto, quando o número de casos confirmados fica maior que 300 para cada 100 mil habitantes (que a Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica como sendo epidemia), o diagnóstico deixa de ter prioridade laboratorial e passa a ser clínico (o médico concluir ser dengue baseado no conjunto de sintomas). Entretanto, acredito que o número de casos de dengue possa ser um pouco menor do que realmente é apresentado pelo Ministério da Saúde (o último boletim epidemiológico divulgado antes dessa postagem apresenta mais de 1,35 milhão de casos prováveis da doença em 2015 (até a semana 30)). Outras doenças também transmitidas pelo mosquito Aedes (sim, chikungunya e zika, estou apontando para vocês) podem apresentar sintomas semelhantes à dengue. Entretanto, o número real pode ser maior também: cerca de 50% dos pacientes que contraíram dengue realmente desenvolvem os sintomas. Ou seja, milhares de pessoas no país podem ter tido dengue e não sabem pois não apresentaram sintomas ou, no máximo, sentiram um leve desconforto em algum dia e não deram bola. Somente um exame laboratorial poderá dizer se houve ou não contato com o vírus.

[2]: lembro-me que, em 2009, com o surto da gripe A (H1N1), todo brasileiro preocupado com em contrair a doença comprava vidros de álcool gel (trabalhava em uma farmácia de manipulação na época e sei bem como era ter que comprar galões de álcool para dar conta de fazer tudo aquilo). Fiquei doente na época, com dor de garganta e febre que não passava. Fui ao médico e ele me recebeu usando uma máscara que filtra partículas virais. Apenas quando o médico teve certeza de que não era nada sério demais, ele retirou a máscara para continuar com a consulta. A saber: estava com infecção na garganta causada por bactérias que naturalmente vivem em nós. Tomei antibióticos e comprimidos que serviam como vacina e, em um mês, estava curado.

[3]: existem, para alguns enfermidades, mais de uma abordagem de testes que podem ser feitos. Mas todos devem ser descritos e padronizados pelo Ministério da Saúde. Só assim podemos ter uma confiança mínima nos resultados.

[4]: para os alérgicos de plantão, culpem as histaminas por isso. A alergia nada mais é que uma resposta exacerbada do organismo contra um antígeno inofensivo. Alergias a pólen de flores, perfumes e pelos de gatos (mas também de certos alimentos ou até mesmo de luvas de laboratório) nada mais é que as células de defesa recrutando a destruição dessas partículas que entram na gente por intermédio desses sinalizadores químicos, as histaminas. Os medicamentos antialérgicos são, em sua maioria, bloqueadores das ações ou da liberação de histaminas.

[5]: acredita-se que, com o advento da mandíbula, o organismo ficava mais suscetível à infecções vindas pelos alimentos (já que a diversidade de consumo aumentou com a possibilidade de caçar, morder e matar a presa). A mandíbula forçou os animais a requintarem seu sistema de defesa, permitindo que continuassem a comer mas sem correr maiores riscos. O sistema imune adaptativo é uma novidade evolutiva dos vertebrados já que, até então, apenas a resposta imune inata, mediada por ações dos genes, permitiam os animais se livrarem de doenças.

[6]: existem vários tipos de imunoglobulinas (nome mais formal dos anticorpos), cada um desenhado para uma função. Eles são designados por Ig (de imunoglobulinas). As IgM, por exemplo, são os primeiros anticorpos que aparecem nos testes sorológicos. Ele é associado ao combate da doença na forma aguda, quando ela invade o organismo. Depois os níveis dela caem e entra a IgG, que é associada a forma crônica e relacionada com a memória imunológica. Existem outros tipos, como a IgA, que está presente nas secreções, como o leite materno.

Imagem que abre a postagem por Dennis Peterson em seu Flickr. Os infográficos foram feitos por mim, protegidos por Creative Commons (CC). Quer uma versão para impressão? Entre em contato nos comentários.

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