A mágica do diagnóstico - post 3


Essa postagem faz parte de uma série sobre técnicas de detecção em laboratório. Na primeira postagem, apresentei sobre o sistema imune e na postagem dois apresentei algumas técnicas sorológicas. Clique nos links para se inteirar do assunto.

* * *

Vimos, na postagem anterior, que o sistema imune cria mecanismos para combater os patógenos que entram em nosso corpo. Esses mecanismos são muito úteis para controlar a doença e evitar que ela nos cause problemas no futuro (no caso de vacinas). Elas também são úteis para os pesquisadores, afim de descobrir se aquele paciente ou animal já teve ou não determinada doença. Veremos, agora, uma técnica que não tenta ver se algo ou não aconteceu: ela busca saber se algo está acontecendo.

Molecular
Embora o conceito de vida seja uma das coisas mais debatidas na biologia (junto com o debate se vírus é vivo ou não), todos os organismos vivos[1] possuem uma coisa em comum: a presença de um material genético. Esse material genético (que pode ser DNA ou RNA) tem as instruções para a construção de um novo ser (seja ele um vírus, uma bactéria, planta ou animal). Com essas informações, o maquinário celular produz as proteínas e enzimas, que servem para construir e manter o organismo.

Infográfico sobre a estrutura do DNA e RNA, além de apresentar uma versão simplificada da síntese proteica
a partir das informações do DNA (veja informações no texto). Clique na imagem para ampliar.

Na imagem acima, podemos ver que a fita de DNA é aberta para que o RNA polimerase leia e faça uma cópia de RNA das letras químicas (A, T, C e G). Esse RNA, chamado de RNA mensageiro (mRNA) sai do núcleo celular para servir de informação para a síntese de uma proteína. O ribossomo recebe os aminoácidos (blocos básicos das proteínas) por meio do tRNA (RNA transportador). Os ribossomos ligam esses aminoácidos baseado na leitura da fita de mRNA[2], gerando uma versão semi-pronta da proteína. Essa molécula gigante de aminoácidos ainda sofre outros processos até ser uma proteína funcional. Isso ocorre o tempo todo em nosso organismo e no organismo de qualquer ser vivente[3].

A posição dos nucleotídeos (as letras químicas) em alguns genes determinam funções que muitas vezes são específicas de cada espécie[4]. Nós podemos descobrir essas posições e usá-las para identificar a espécie ou o grupo de espécies em questão.

E é isso que uma das técnicas de biologia molecular mais conhecidas faz: o PCR.

PCR
Provavelmente você já deve ter visto em séries policiais ou investigativas (CSI é o mais famoso) quando se colhe uma amostra de DNA do suspeito e compara com a cena do crime, dando tudo certo no final. Embora nessas séries exagerem em conseguir a resposta em questão de minutos (e até de onde se obtém esse DNA), é possível sim fazer alguns desses procedimentos. E o PCR é um deles.

O PCR é a sigla em inglês para Polymerase Chain Reaction (ou Reação em Cadeia da Polimerase). Nela usamos uma pequena quantidade de DNA extraído da amostra e, com ele, amplificamos as fitas de um trecho específico de DNA. Isso tudo quer dizer que, de uma simples amostra, teremos muito DNA no fim das reações que fazemos no laboratório. O infográfico abaixo apresenta os conceitos básicos de uma PCR.

Infográfico apresentando os reagentes e os eventos que ocorrem em uma PCR convencional.
Clique na imagem para ampliar.

Na PCR, a partir de uma única fita de DNA (em sua amostra, se bem extraída, não haverá apenas uma única fita), podemos obter muito DNA de interesse (você já entende o que é isso, calma). Para ter uma ideia, um PCR convencional tem entre 30 a 35 ciclos[5] em cada reação. Isso significa que, no fim da reação, você pode ter até 2^35 amplicons (mais de 30 bilhões de amplicons, os trechos de DNA que foram amplificados na PCR).

Mas, para que tudo isso aconteça entram em cena dois agentes importantes da PCR: a Taq polimerase e os primers. A Taq polimerase nada mais é que o DNA polimerase, a enzima que constrói a fita de DNA. Mas ela tem a vantagem de suportar as altas temperaturas que operam dentro do aparelho de PCR sem perder a sua função. Ela foi descoberta no fim dos anos 70 quando pesquisadores analisavam essa enzima em uma bactéria que vive em ambientes de altas temperaturas. A Thermus aquaticus (nome científico da bactéria, que emprestar o nome para a Taq) permite que inúmeras pesquisas moleculares ocorram no mundo.

Entretanto, é o primer que ocupa a atenção principal. O primer é um trecho pequeno de nucleotídeos (como uma pequenina fita de DNA) que serve como iniciador da síntese de DNA. Ele serve, podemos pensar assim, como um guia que ajuda a Taq polimerase a saber onde ela deve começar a replicar a fita de DNA aberta antes. E são os primers que os pesquisadores usam para identificar o que querem na amostra. Se, como no meu caso, desejo procurar por Trypanosoma cruzi (agente causador da doença de Chagas) em minhas amostras, basta eu ter os primers que amplificam um trecho de DNA que é conhecido apenas nesse protozoário[6], rodar junto com minhas amostras extraídas e, em seguida, verificar se deu certo.

E como eu faço para ver se deu certo? A PCR convencional não permite ver alguma coisa assim que sai do aparelho de PCR (chamado de termociclador). Como ele amplifica DNA, que é invisível aos olhos, ele não deixa o microtubo onde executamos esses procedimentos com outra cor ou coisa do tipo. Para vermos os resultados da PCR, usamos a eletroforese em gel. O infográfico abaixo mostra como funciona a eletroforese.

Infográfico apresentando os conceitos da eletroforese. Clique na imagem para ampliar.

A eletroforese nos mostra se a PCR deu certo ao brilhar o DNA quando exposto à luz ultravioleta (UV). Fazemos isso quando colocamos os produtos da PCR dentro de um gel (geralmente de agarose, uma versão purificada de agar, que é obtido de algas marinhas) e o expomos a um campo elétrico. O DNA, por ter carga negativa, tende a se deslocar do polo negativo desse campo elétrico que corre junto ao gel e vai em direção ao polo positivo. E ele realmente se desloca por dentro do gel. Assim como o salgadinho de pacote, em que os pedacinhos quebrados e menores ficam todos no fundo e os maiores e mais inteiros ficam na parte de cima, o mesmo ocorre com o DNA. Pedaços grandes de DNA tem mais dificuldade em correr dentro do gel (afinal de contas, ele oferece resistência) quando comparado com pedaços menores. Por isso, podemos estimar o tamanho da molécula de DNA pela posição que ele fica no gel, depois de alguns minutos no campo elétrico[7].

Quando a técnica de PCR surgiu, ela foi considerada como uma grande revolução em testes laboratoriais. Embora de custo maior que a sorologia, a PCR permite detectar a presença do agente infeccioso em pequenas proporções, independente se coletado do sangue, tecido ou a partir do trato digestivo de insetos. Inventado em 1983 pelo bioquímico Kary Mullis (laureado com o Nobel 10 anos depois pelo feito), a PCR é uma técnica amplamente difundida e atualmente tem-se disponível reagentes semi-prontos[8] e termocicladores que funcionam sem intervenção humana.

Além disso, existe vários tipos de PCR disponíveis para pesquisa. Destaco, rapidamente, três tipos além do convencional: o nested-PCR, qPCR e RT-PCR.

O Nested-PCR é um nome bonito para a ação de fazermos a 'PCR da PCR'. Consiste em usar uma PCR feita como sendo amostra para a realização de outra PCR. Podemos usar os mesmos primers usados para aumentar a quantidade de DNA a ser analisado ou, ainda, usar outros primers que amplificam trechos menores que estão dentro dos trechos maiores de DNA que foram amplificados. É útil quando a quantidade de DNA na amostra é muito pequeno ou, em certos casos, diferenciar espécies dentro de um gênero.

Já o qPCR é o PCR quantitativo ou, ainda, PCR em tempo real. Nessa técnica é possível quantificar a quantidade de DNA que está sendo amplificado, em tempo real, já que o termociclador fica ligado a um computador, apresentando os dados em forma de gráficos. Com isso, dispensa-se o uso do gel para saber se determinada amostra tem ou não o DNA de interesse. Isso acontece devido a presença de um fluoróforo[9] que é inserido no microtubo de reação. A medida que as reações acontecem, o produto ganha cor, que é detectado por um espectrofotômetro.

Por fim, o RT-PCR é uma PCR feita para amostras de RNA. A PCR de transcriptase reversa transforma a informação de RNA em DNA (seria, de certa forma, o processo contrário que ocorre em nós e que foi mostrado no primeiro infográfico) e, a partir daí, é feito a PCR normalmente. As letras 'RT' (de reverse transcriptase) frente à palavra PCR confunde alguns autores de artigos, que o usam no sentido de real time PCR (que é, na verdade, o qPCR). É possível sim fazer um qRT-PCR, que seria uma PCR de transcriptase reversa em tempo real, mas uma coisa não está associada a outra quando sozinhas.

O PCR é uma das técnicas molecular mais usadas, entretanto existem outras igualmente úteis, como mensurar proteínas, como o Western blot. Infelizmente não tenho conhecimento prático sobre a técnica, mas irei apresentá-la rapidamente. De forma semelhante à PCR, no Western blot submetemos as proteínas a eletroforese em gel[10]. Nesse caso o mais usado é o gel de poliacrilamida, embora outros existam no mercado. Depois da corrida do gel, as proteínas são transferidas do gel para uma membrana de nitrocelulose. Nessa membrana (semelhante a uma folha de papel mais mole), as proteínas são expostas a anticorpos que, de forma semelhante ao que ocorre no ELISA (veja postagem anterior), elas são marcadas para brilhar quando expostas a um substrato. Nesse caso, os anticorpos se ligam às proteínas da amostra que estão na membrana. O exame para detectar a doença da vaca louca são feitos usando esse método[1].

* * *

As técnicas moleculares auxiliam os pesquisadores a procurar pelo agente causador da doença nas amostras de sangue, tecido ou até mesmo em urina e fezes. Com isso, é possível saber mais sobre determinada doença no momento em que é feito o estudo. Isso traz um panorama mais real da situação e tomar medidas de saúde pública.

Na próxima postagem, iremos ver sobre uma técnica que apenas um bom microscópio é mais que o suficiente. Até lá!

Agradecimentos:
Com o propósito de sempre passar o conhecimento adiante, agradeço à Maria Fernanda e Mirian por me ensinarem como fazer extração de DNA, PCR e eletroforese no começo de minha vida acadêmica. Agradeço, também, a Virgínia pela revisão no infográfico de PCR. Fazer ciência com essa turma é demais!

Rodapé:
[1]: além do debate sobre o que pode ou não ser considerado vivo (e isso inclui os vírus), entra em cena outro 'problema' para os biólogos resolverem: os príons. Príons são, basicamente, proteínas anômalas que em contato com proteínas saudáveis as faz serem anômalas também. Acontece que os príons não desempenham as funções das proteínas normais, o que leva a problemas sérios. A encefalopatia espongiforme bovina, mais conhecida como 'doença da vaca louca' é causada por príons, que são transmitidos pela alimentação. Uma versão humana dela também existe: a doença de Creutzfeldt-Jacob.

[2]: os aminoácidos são inseridos na síntese proteica lendo uma trinca (grupos de três) de letras do mRNA. Se, na leitura do mRNA chega a trinca GAA, por exemplo, isso significa que o ribossomo deve selecionar um tRNA que carrega o aminoácido chamado ácido glutâmico (Glu). Já se vir um GGA, significa que deve ser inserido a glicina (Gli). Por isso mutações específicas no DNA podem causar sérios problemas. Uma mudança em apenas um nucleotídeo (no caso, a segunda letra nesse exemplo 'GAA' para 'GGA') causa uma alteração em qual aminoácido entrar na proteína. Isso leva a deformações na estrutura da proteína ou enzima que está sendo produzida, o que leva a problemas funcionais (a proteína não exerce sua função ou a enzima não liga na molécula que ela deve quebrar de forma correta).

[3]: desconsidera-se os vírus nesse caso. Eles usam o maquinário das células procariotas ou eucariotas para realizar as etapas descritas.

[4]: sim, existem grupos de genes que desempenham funções tão importantes que eles são encontrados em diversos grupos animais e plantas. Outros, são encontrados apenas em grupos mais aparentados. Mas existem genes e sequências de letras tão específicos que podemos usá-los para identificar espécies e até grupos dentro dessas espécies, como mostrado nesse post.

[5]: os ciclos são as etapas de desnaturação (temperatura mais alta, acima de 92 ºC, que abre a fita de DNA), seguido de anelamento (cerca de 50 ºC, onde os primers se ligam às fitas abertas) e extensão (cerca de 70 ºC, onde a Taq polimerase constrói novas fitas, usando as primeiras como molde).

[6]: se você chegou aqui pesquisando sobre primers para T. cruzi, vou te ajudar: TCZ1 e TCZ2, segundo Virreira et al, 2003.

[7]: fazemos isso usando marcadores de peso molecular (ladder). Disponíveis de várias formas no mercado, o fabricante desses produtos colocam moléculas de vários tamanhos juntos. Quando expostos ao campo elétrico, eles se separam de acordo com seus tamanhos. Os mais pesados andam menos que os mais leves. Como sabemos os tamanhos moleculares desses marcadores, podemos usá-los para inferir o tamanho das nossas amostras.

[8]: hoje temos uma grande facilidade em realizar PCR (até mesmo no Brasil). Podemos pedir os primers (do jeito que quisermos) por email e recebemos por correio uma semana depois, com preços relativamente baixos (exceto os reagentes, eles são caros pra caramba).

[9]: a ideia de funcionamento é semelhante ao que foi mostrado na postagem anterior de sorologia.

[10]: as proteínas são obtidas das células ou tecidos e, posteriormente desnaturadas em altas temperaturas. É usado um surfactante chamado dodecil sulfato de sódio (SDS) que se liga às proteínas e dão a elas carga negativa, que irá ajudar na corrida do gel. O SDS é mais conhecido como lauril sulfato de sódio e é encontrado em shampoos, detergentes e pastas de dente.

Imagem que abre a postagem por David em seu Flickr, modificado. Os infográficos foram feitos por mim, protegido por Creative Commons (CC). Quer uma versão para impressão? Entre em contato comigo.
Referência:
VIRREIRA M, TORRICO F, TRUYENS C, ALONSO-VEJA C, SOLANO M,  CARLIER Y, SVOBODA, M. Comparison of polymerase chain reaction methods for reliable And easy detection of congenital Trypanosoma cruzi infection. Am. J. Trop. Med. Hyg. v. 5, p. 574–583, 2003.

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