O que sabemos sobre a Febre Amarela?


Desde o fim de 2016 o Ministério da Saúde do Brasil notifica a Organização Mundial da Saúde (OMS) de casos humanos (com mortes) de febre amarela. Dezenas de casos já foram registrados, principalmente em Minas Gerais, onde os primeiros casos foram relatados. De lá para cá, outros Estados brasileiros começaram a ter casos da doença, sobretudo com morte de primatas não humanos (macacos), principalmente em São Paulo e Rio de Janeiro.

A febre amarela é uma doença conhecida a séculos pelo homem e, apesar de bem conhecida, ainda é um desafio e saúde pública por sua fácil disseminação e alta taxa de mortalidade se não tratada a tempo. Adicionando mais conhecimento, a série 'O que sabemos?' ganha mais uma publicação, dessa vez sobre a doença que sempre nos rondou e que resolveu mostrar as caras agora.

* * *

Originária da África, a doença originalmente circulava no meio silvestre infectando macacos e outros primatas não-humanos. Os africanos, misturados nessa paisagem natural, faziam parte do ciclo da doença, contraindo o vírus da febre amarela. Análises apontam que a origem mais provável do vírus ocorreu no Leste africano, se disseminando ao longo do tempo para o resto da África tropical[1].

O vírus do gênero Flavivirus (mesmo gênero dos conhecidos vírus da dengue e da febre zika) tem material genético de RNA fita simples de sentido positivo[2], infectando diversas células do corpo, sobretudo monócitos e macrófagos (células de defesa). O nome do gênero (e da família Flaviviridae) foi dado devido aos estudos com o vírus da febre amarela. Flavus significa 'amarelo' em latim.

O ciclo do vírus da febre amarela no corpo humano é semelhante a outros flavivírus, como da dengue e zika.
Em (1), o mosquito fêmea pica a pessoa em busca de sangue para alimentar seus ovos. Ao inocular a saliva
anestésica na picada, libera vírus da febre amarela, que caem na corrente sanguínea (2). Ao adentrar nas células
do corpo (3), o vírus libera o seu RNA, que será lido para sintetizar as informações contidas nesse material
genético pelo ribossomo (4). Novos vírus são gerados por essa informação que, ao encherem a célula, acabam
rompendo a membrana celular (5), liberando novos vírus no sangue. Um novo mosquito, ao picar essa pessoa (6),
suga o sangue contendo os vírus, que poderão ser transmitidos para outras pessoas e animais.

Os africanos estavam relativamente acostumados com a doença. Casos registrados em populações africanas dificilmente levavam à morte. Entretanto, quando surtos da doença ocorriam, as principais mortes registradas eram entre os colonos europeus, que não estavam acostumados com a doença.

A febre amarela saiu da África e ganhou a América muito provavelmente no século XVII, com o tráfico de escravos para as colônias americanas, tanto na América do Norte (Estados Unidos), quanto na América Central (sobretudo no Caribe) e América do Sul (principalmente Brasil). O principal transmissor da doença, o mosquito Aedes aegypti, natural da África, também veio para a América nesse período[3]. Em 1647 foi registrado o primeiro surto da doença na América, nas ilhas caribenhas de Barbados. Os europeus, além de levarem os escravos, a doença e o mosquito para essas regiões, provocaram um distúrbio ecológico ao modificar o ambiente para a plantação da monocultura da cana-de-açúcar[4], o que contribuiu para a rápida disseminação da doença nos locais onde ela foi levada. E isso foi constatado ainda em meados do século XVII, apontando a importância do estudo do ambiente na emergência das doenças[5].

Sintomas
O nome da doença remete por duas principais características dos doentes, a presença de febre e pelo tom amarelado que a pele e olhos ficam devido ao comprometimento do trabalho do fígado.


O vírus tem um período de incubação entre três a seis dias (que é o período o qual o vírus se multiplica e se espalha pelo organismo), sendo seguido pela primeira fase da doença, mais leve, que inclui febre, dor de cabeça e nas costas, perda de apetite e vômitos. Esses sintomas permanecem cerca de quatro dias. Na maioria dos casos, os doentes melhoram depois desse período.

Entretanto, cerca de 15% das pessoas avançam para a fase dois, que ocorre cerca de um dia depois das melhoras de alguns dos sintomas da fase um. Essa fase é a mais tóxica, que inclui comprometimento de órgãos importantes, como o fígado e rins. O comprometimento desses órgãos levam ao amarelamento da pele, chamada de icterícia. Vômitos e urinas com sangue também são comuns, além de sangramentos e febre alta. Dados da OMS apontam que metade dos pacientes que entram na segunda fase morrem entre sete a dez dias após o início dos sintomas.

O esquema acima ilustra as principais etapas da doença, desde a inoculação do vírus pelo mosquito Aedes[6] até o fim nos casos graves.

Vacina
Apesar dos problemas sérios causados pela doença, ela pode ser facilmente evitada através do controle do mosquito[7] e por vacinação. As primeiras vacinas começaram a ser desenvolvidas nas primeiras décadas do século XX, após o descobrimento de que a febre amarela era causada por um vírus e não por uma bactéria[8]. Em 1927 foi isolado o vírus a partir de uma amostra de sangue de um sobrevivente na África de 28 anos. Asibi, assim chamado, acabou nomeando o isolado viral, que serviu de ponto de partida para o desenvolvimento das vacinas atuais.

Max Theiler, trabalhando para o Instituto Rockefeller[9], após anos de estudo, desenvolveu a vacina usando ovos de galinha como fonte de cultivo dos vírus. A vacina 17D para febre amarela foi desenvolvida em 1937 por Theiler e sua equipe. Em 1938, a vacina foi testada pela primeira vez pelo Instituto Rockefeller no Brasil em 1938. Nessa época, como veremos abaixo, o país estava no combate à doença.

A vacina foi considerada um sucesso, com alto nível de segurança para aplicação em grande escala. Ao longo dos 60 anos, mais de 400 milhões de doses de vacina 17D foram aplicadas em todo o mundo, com grande sucesso. Essa vacina é utilizada até hoje.

Por sua colaboração, Theiler foi laureado com o Nobel de Medicina em 1951 "por suas descobertas sobre a febre amarela e como combate-la".

Hoje, de acordo com dados da OMS, a primeira dose da vacina oferece 95% de proteção nos primeiros 10 dias após a aplicação, subindo para 99% no primeiro mês. Apesar dos anos passados recomendarem doses de reforço a cada 10 anos, sabe-se que pessoas saudáveis permanecem protegidas por décadas com apenas uma única dose. Em áreas de epidemias, recomenda-se apenas uma segunda dose para aqueles com mais de 10 anos de vacinação.

Brasil
O primeiro surto da doença registrado no Brasil ocorreu em 1685, em Recife, Pernambuco. A doença, de acordo com os registros do Ministério da Saúde, permaneceu na região por 10 anos. Surtos subsequentes em outras regiões do Nordeste foram relatados nessa época também.

Após as descobertas no fim do século XIX de que o mosquito Aedes era o transmissor da doença[3], o jovem médico Oswaldo Cruz, que retornara de seus estudos no Instituto Pasteur na França, foi nomeado Diretor Geral de Saúde Pública em 1903. Apresentou naquele mesmo ano sua proposta para o controle da febre amarela: o combate ao mosquito Aedes.

O método aplicado por Cruz e apoiado financeiramente pelo presidente na época, Rodrigues Alves, era implacável. As equipes de combate ao mosquito entravam em todos os terrenos e casas e queimavam folha de fumo, de eucalipto e de enxofre, além de limparem caixas d'água e limpeza de ruas e terrenos. Essa forma 'bruta' de trabalho foi criticada e ridicularizada pela imprensa na época, que não acreditava que o mosquito era o transmissor da febre amarela.

Apesar disso, Oswaldo Cruz conseguiu controlar a febre amarela em apenas três verões (onde o número de casos era maior, justamente por conta das chuvas). Com isso, o apoio de pessoas influentes e a mídia na época reconhecendo os esforços do sanitarista, Oswaldo Cruz deixou de ser um chato combatente do mosquito para um reconhecido médico no Brasil e no mundo.

Áreas afetadas (em vermelho) e área ampliada (amarelo).
Em cinza são as áreas recomendadas para vacinação
contra a febre amarela. Dados de janeiro de 2018.
Com isso, casos de febre amarela e de dengue (outra doença transmitida pelo mesmo mosquito) praticamente sumiram nas grandes cidades. Esse cenário permaneceu até o ressurgimento do surto no fim dos anos 1920 no Rio de Janeiro. Anos mais tarde a primeira vacina, a 17D, foi testada na população brasileira, com grande sucesso.

Ações subsequentes de trabalhos de vacinação e combate ao mosquito fizeram a doença ser erradicada no ambiente urbano em 1958. Com isso, a doença ficou restrita em ambientes silvestres, encerrada numa relação mosquito Haemagogus e macacos. Casos esporádicos nas últimas décadas foram relatados no Brasil devido, principalmente, a trabalhadores e turistas que estavam em área de mata.

E, infelizmente, começamos o ano de 2017 com um novo surto de febre amarela. O Ministério da Saúde trabalha com monitoramento epidemiológico iniciando os ciclos em julho, fechando o ano no fim de junho do ano seguinte. Por isso, de acordo com os dados, entre julho de 2017 até o fim de janeiro de 2018, publicados dia 30 de janeiro de 2018 mostram mais de três mil casos notificados em macacos, com mais de 480 confirmados. Casos humanos são mais de mil casos notificados, com 213 confirmados (sendo 81 óbitos). Sem contar os inúmeros registros de primatas não humanos, sobretudo bugios, que foram encontrados mortos no interior de Minas Gerais e São Paulo[10].

Série histórica de casos de febre amarela desde 1980 até fim de junho de 2017 (barras vermelhas). A taxa de
letalidade é calculada pelo total de casos confirmados de febre amarela pelo número de mortes registrado
(linha preta). A linha tracejada azul representa a taxa de letalidade média ao longo da série histórica.

O combate ao mosquito, que já é conhecido por transmitir a dengue, a febre zika e a chikungunya, foi intensificado nesse ano e campanhas de vacinação estão sendo realizados em todo o país, sobretudo nas áreas de risco de transmissão. A cartilha abaixo informa com detalhes as pessoas aptas ou não para participar da vacinação.

Recomendações de vacinação para febre amarela no Brasil. Clique para ampliar.

Recentemente, o Ministério da Saúde aprovou o fracionamento da vacina: essa medida permite que uma mesma dose (que originalmente seria destinada apenas a uma pessoa) seja distribuída para, pelo menos, quatro pessoas. Estudos conduzidos mostram que a vacina fracionada protege os pacientes por, pelo menos oito anos (período o qual os vacinados foram acompanhados). Esse método foi utilizado na África em surtos passados e visa justamente aumentar a quantidade da população vacinada em época de surto. Contudo, viajantes que pretendem ir para países que exigem vacinação para febre amarela (através do certificado internacional) precisam tomar a dose completa.

E a OMS recomendou a vacinação para febre amarela para todos os estrangeiros que pretendem viajar para o Estado de São Paulo. Como é difícil saber onde exatamente os turistas irão durante sua visita ao Estado, a medida serve como precaução. A Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo liberou uma lista dos municípios em que a população deverá se vacinar. Veja aqui (em PDF).

No site do Ministério da Saúde há mais informações sobre o assunto, desde detalhes sobre a doença até os esquemas de vacinação.

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E, assim como ocorreu no início de sua vinda à América, o desiquilíbrio ambiental pode ter contribuído para a instalação desse novo surto da doença. O desastre de Mariana, em que toneladas de lama arrasaram com diversas cidades mineiras pode ter causado um desequilíbrio no controle do mosquito. Somado ao período de chuvas ser maior nessa época do ano (verão), o vírus que estava circulando no ambiente silvestre acabou sendo levado para as grandes populações de forma mais fácil, atingindo as pessoas que, em sua maioria, moram ou visitam áreas rurais.

O estudo de doenças tropicais envolve não apenas a doença (o agente causador da enfermidade), mas das relações da doença com os vetores, com os animais suscetíveis e não suscetíveis à doença e o ambiente. Desequilíbrio em um desses fatores podem oscilar a prevalência da doença para mais ou para menos. Infelizmente dessa vez, a febre amarela que pode ser facilmente combatida por vacinação, está dando dores de cabeça para a população.

O controle do mosquito e vacinação em massa se mostram eficientes para combate à febre amarela, mas é preciso pensar que eles não funcionarão sozinhos se o ambiente onde as pessoas e os animais vivem estiver degradado.

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P.s.: algumas informações dessa publicação foram atualizadas, inserindo novas informações relevantes. Atualização: 31/01/18.

Rodapé:
[1]: apesar de haver regiões desérticas e de savana na África, existem grandes áreas do continente que são florestas úmidas, propiciando uma grande diversidade de insetos vetores e mamíferos diversos. Com isso, a circulação de vírus, protozoários e outros agentes causadores de doenças é alto. Isso, contudo, não quer dizer q não ocorra doenças em animais de regiões de savanas ou desérticas provocadas por outros organismos. Trypanosoma vivax, responsável por tripanossomíase animal no gado bovino, é comum em animais da savana africana, como búfalos, órix e girafas.

[2]: essas informações, embora técnicas, são importantes para os pesquisadores saberem como funciona a doença. As nossas células, para produzirem novas proteínas e enzimas, transformam as informações do DNA no núcleo em uma fita de RNA mensageiro. Assim como o vírus, nosso RNA é fita simples de sentido positivo. Ou seja, as organelas que produzem essas proteínas não sabem que o RNA dentro da célula é proveniente da própria célula ou do vírus (da febre amarela, no caso). Ou seja, o vírus se utiliza disso para usar a estrutura da própria célula para produzir outros vírus iguais a si própria. É dessa forma que o vírus se instala e se multiplica, causando a enfermidade.

[3]: a descoberta de que o Aedes era o transmissor do vírus da febre amarela ocorreu apenas em 1884, quando o médico cubano Juan Carlos Finlay. Estimulado pela descoberta anos antes de que a filariose (ou elefantíase) era transmitida por mosquitos, Finlay estudou a possibilidade do mosquito Aedes ser o transmissor da doença, indo contra a corrente na época que acredita que a febre amarela fosse contagiosa. Quase 20 anos depois, em 1901, que os dados de Finlay foram confirmados, relacionando o mosquito à doença.

[4]: apesar de vermos na História do Brasil que nosso país, na época colônia de Portugal, era um grande produtor de cana-de-açúcar, não éramos os únicos. Diversos países estavam interessados em fazer dinheiro na produção do açúcar para o mercado europeu, ávido no consumo desse doce produto. Os ingleses, assim como os holandeses, corriam atrás dos portugueses e espanhóis nesse mercado. A implantação da monocultura da cana-de-açúcar em suas colônias criaram um capítulo próprio na história do mundo, e modificou a relação que temos com essa planta até hoje.

[5]: a monocultura da cana-de-açúcar criou condições de criadouros para o mosquito Aedes que, associado a uma redução de pássaros e outros insetos que se alimentam de mosquitos e larvas, fez com que a população do mosquito transmissor aumentasse de forma surpreendente.

[6]: importante ressaltar que o vírus é transmitido pelo Aedes no chamado ciclo urbano da doença. No ciclo silvestre, o qual ocorre a participação de macacos, o principal transmissor é outro mosquito, Haemagogus sp.

[7]: infelizmente algo muito difícil na atualidade.

[8]: em 1902 foi demostrado que o agente causador da febre amarela atravessava filtros que geralmente retiam bactérias. Entretanto levou-se anos até que a comunidade científica aceitasse que a doença era causada por vírus. Muitos acreditavam que uma forma modificada da Leptospira, bactéria responsável pela leptospirose fosse a causadora da enfermidade.

[9]: talvez você tenha ouvido falar sobre esse Instituto recentemente. Seus pesquisadores descobriram o vírus zika na África nos anos 1950. Alguns boatos envolveram o Instituto dizendo que eles estavam vendendo o vírus para qualquer um poder comprar (o que é, naturalmente, uma grande bobagem).

[10]: importante ressaltar que o macaco, assim como nós, são vítimas da doença e não transmitem a doença para as pessoas. Desde o começo de 2017, foram relatados casos de pessoas que, com medo da febre amarela, estavam matando macacos para evitar a doença. Isso, além de cruel e totalmente sem sentido, além de ser ilegal, por se tratar de animal silvestre protegido por lei. O meio mais eficiente para combater a febre amarela é através do combate ao mosquito Aedes aegipty e pela vacinação. Os macacos servem como sentinelas, ou seja, permitem os médicos e pesquisadores saberem o avanço da doença no ambiente silvestre. Quando se encontra macacos mortos na mata, é um indicativo de que a doença chegou naquela região. Assim, campanhas de vacinação serão conduzidas pelas autoridades de saúde na população local, afim de evitar a disseminação da doença entre as pessoas.

Imagens: ilustração do ciclo da febre amarela e sintomatologia feitos por mim e protegido por Creative Commons. Mapa do Brasil e cartilha de vacinação são divulgação do Ministério da Saúde.
Fontes: com informações de Ministério da Saúde, Portal da SaúdeOMS, OMS, IBB Unesp e:
BENCHIMOL, J. L (1994). História da febre amarela no Brasil. História, Ciências, Saúde - Manguinhos. 1 (1). http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59701994000100010
NORRBY, E (2007). Yellow fever and Max Theiler: the only Nobel Prize for a virus vaccine. The Journal of Experimental Medicine. 204 (12): 2779. DOI: 10.1084/jem.20072290

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