[resenha] Maus

Ao fundo, o campo de concentração de Auschwitz, talvez o mais conhecido entre os campos de concentração da Segunda Guerra. No pico da guerra, o local recebia carregamentos diários de judeus em trens, em vagões de carga como da foto, abarrotados de homens, mulheres e crianças. Nem todos conseguiram sair vivos de lá. Parte da história de Maus acontece atrás daquelas paredes ao fundo.

A história da humanidade é um instrumento poderoso a qual podemos vislumbrar o passado, ver os erros e acertos e entender o porque do mundo atual ser o que é. Apesar da história trabalhar com o passado, ela nos permite fazer suposições sobre o futuro, já que a humanidade tem a péssima mania de não aprender direito com os erros do passado.

Existem várias formas de classificar a história: a maioria segue a tradição clássica, em cinco partes: Pré-História, História Antiga, Média, Moderna e Contemporânea[1]. Já outras pessoas podem dividi-la em apenas duas partes. As pessoas que a dividem assim não deixam de estar erradas, já que o marco da divisão é, de fato, um evento que marcou o mundo profundamente. Para elas, existe uma humanidade antes e uma humanidade depois da Segunda Guerra Mundial.

A Segunda Guerra Mundial (2GM) foi um dos maiores conflitos armados da história da humanidade, com um dos maiores eventos de logística do mundo, deslocando mais de 100 milhões de soldados para diversas partes do mundo, com uma das maiores baixas entre militares e civis, com pelo menos 50 milhões de mortos[2] entre 1939 e 1945.

Provavelmente todos nós já ouvimos e estudamos um pouco que seja da história da 2GM e como os números podem nos impressionar pela grandiosidade. Assunto de inúmeros livros e documentários, a 2GM é um retrato da história muito bem conhecida e trabalhada. Mas, ainda assim, muitas vezes, esses números e esses registros não trazem para perto de nós a sensação de que era ter vivido essa época.

É aí que entra toda a sensibilidade e a destreza de Spiegelman, que traz o sofrimento e as histórias de seu pai judeu como prisioneiro de guerra durante a 2GM. Ele nos conta como era a vida na Polônia antes da guerra e como foi principalmente ter a sensação da morte sempre por perto e de como essa sensação ia crescendo a cada dia, assim como a fome e a perda dos entes queridos.

O autor se utiliza de sua maior habilidade para trazer essa história para nós: através de quadrinhos. Retratando os judeus como ratos (maus, em alemão) sempre fugindo dos nazistas caricaturados como gatos, Artie (como é chamado o autor pelo próprio pai na HQ) consegue fazer a gente se questionar em como tudo aquilo foi possível de ter acontecido. Pior, como alguém consegue sobreviver a tudo aquilo e chegar a contar sua história de vida para a posteridade.

Mas, o que realmente impressiona, e sinto isso principalmente na segunda parte da HQ[3], é que a Guerra mexeu não apenas com quem a viveu, com que a sentiu em suas entranhas e mentes. Ela mexe com todos ao seu redor. Inclusive com quem nasceu anos depois do terror.

Artie usa de uma metalinguagem absurdamente bem encaixada na HQ, em que ele se desenha conversando com o pai, em que ele mostra os dilemas e os problemas em conversar com seu pai, que mistura os eventos da Guerra com as coisas que acontecem na época em que o autor montava as memórias para criar a própria HQ. Isso se soma aos problemas aos quais o autor sofre, já que ele mesmo pensa se seria honrado ele ter a vida que tinha pois não tinha sofrido uma ínfima parte daquilo que seus pais haviam passado.

Assim, Artie traz para gente a clara sensação de que, de certa forma, a Guerra foi um evento traumático demais para ficar presa em uma única geração. Até os filhos e vizinhos de quem sofreu com a guerra também sofrem. O autor brinca que seu pai é um tanto caricato, a versão do judeu muquirana que não abre mão de gastar 20 centavos a mais para ter uma coisinha um pouquinho melhor. Mas, a sensação que se tem, é que isso não é gratuito. Ele não é assim por ser assim: ele aprendeu que ser assim é melhor. Ao longo da leitura isso vai ficando claro como a água (apesar de Artie discordar desse exagero de seu pai).

A HQ é um convite para sentirmos na pele uma pequena fração do que os judeus passaram durante o Holocausto na 2GM. Várias vezes eu parava a leitura no meio e sentia um arrepio na espinha só de imaginar aquele cenário que o pai de Artie viveu[4: com spoiler]. A perda de amigos e familiares, a sensação de que nada mais daria certo, as pequenas esperanças ao encontrar alguém disposto a ajudar[5] e, principalmente, a constante sensação da fome e de que aquele dia seria o último da pessoa incomodam e nos faz sempre ter em mente do sofrimento que foi esse triste registro da história.

Mas com certeza é essa sensação que o autor quer deixar para gente: de que ninguém ganha com a Guerra. Suas marcas e suas cicatrizes ficam para sempre na memória e no corpo e até mesmo quem não viveu a Guerra as sente diariamente.

Recomendo a leitura, sobretudo para quem se interessa sobre a história das guerras mundiais. É um complemento humano que vai além dos números de soldados, do número de vítimas e de dias que levaram para a guerra chegar ao fim. Lembre-se: essa obra não ganhou o Pulitzer à toa.

Maus
Art Spiegelman
296 páginas
Companhia das Letras, 2009.

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Rodapé:
[1]: a tradição clássica, que orienta a maioria dos estudos de história, coloca a Pré-História como sendo o período do surgimento da humanidade (sobretudo da cultura humana) até a invenção da escrita (datada por volta de 4 mil AeC). Então entramos na Antiguidade, com o alvorecer e queda de grandes civilizações antigas, desde egípcias, gregas, babilônicas e persas. O fim da Antiguidade se dá em 476 DeC, com a queda do Império Romano Ocidental. Em seguida, Idade Média, com o aumento populacional e o mundo europeu dominado pela relação feudal entre susseranos e vassalos. Termina em 1453, com a queda do Império Romano do Oriente, depois da queda de Constantinopla pelos turcos. Já a Idade Moderna mostra as grandes explorações e o desenvolvimento do modelo capitalista. O Renascimento das artes e ciência e a Revolução Francesa são dessa era, que encerra essa idade em 1789. Já a última Idade, a Contemporânea é a qual vivemos hoje. Vemos o desenvolvimento da indústria, dos motores e dos meios de transporte. Viajamos para a Lua e dominamos tecnologia avançada e foi marcada por guerras mundiais e por conflitos na África, além do desenvolvimento da medicina e da erradicação de doenças.

[2]: baseado em estimativas mais conservadoras. Talvez nunca saberemos o número exato (ou o mais próximo possível), visto que muitas pessoas (famílias e comunidades inteiras) foram exterminadas e sequer deixaram algum tipo de registro.

[3]: a HQ saiu em duas partes, em anos diferentes de lançamento. A versão que li, e a mais fácil de achar, é a versão completa, com as duas partes reunidas em um único volume.

[4]: ❗ essa nota de rodapé contém spoiler: uma parte que talvez nunca me esqueça é de quando o pai de Artie diz, quando estava no campo de concentração, que ele precisava ir ao banheiro durante a noite. O banheiro ficava no subterrâneo, onde os corpos eram jogados. Ele tinha que pisar por cima dos corpos magros e das cabeças escorregadias para chegar ao banheiro. Ele temia e chorava ao pensar que no dia seguinte alguém poderia estar passando e pisando em cima dele da mesma forma.

[5]: como podemos ver depois, ninguém ajuda ninguém realmente. Sempre é preciso pagar pela ajuda.

Com imagem por alanbatt no Pixabay.

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