Jornada humana e DNA mitocondrial...


Correr atrás de nossas origens é uma das coisas que sempre gostamos de saber e fazemos isso em maior ou menor grau. Quando reunimos nossos familares em um belo jantar sempre ouvimos um ou outro perguntar: onde está a tia Cotinha que nunca mais vi? E aquele primo que mora no litoral? Temos uma curiosidade natural em saber qual é o nosso parente mais distante possível que a cabeça de nossos ancestrais conseguem lembrar. A Ciência também tem essa curiosidade. Só que, ao contrário das reuniões em família, a Ciência usa técnicas um tanto diferentes mas que no fundo darão o mesmo resultado: saber nossos parentes mais distantes usando a "memória" disponível em nossas células.

DNA mitocondrial
O alimento que você ingere vira energia para as células depois que os açúcares* entram na chamada via glicolítica. O final do processo gera muito pouca energia (apenas 2 ATPs**). Tudo isso é que a célula seria capaz de fazer. Só que existe uma artimanha na célula que permite ela produzir mais, muito mais ATP usando a mesma quantidade de glicose. Um dos produtos da final da glicólise é, além dos 2 ATPs, o piruvato. Nessa etapa, em nossas células, o piruvato entra dentro uma organela que permitirá a produção de mais 36 ATPs! E a organela responsável por isso é a mitocôndria!***

Bom, por que a exclamação depois de mitocôndria? Acontece que a mitocôndria não é, de acordo com que se aceita atualmente, algo que veio originalmente da própria célula. Ela era, nos primórdios da vida, uma espécie de bactéria que fora capturada. Ela acabou sendo preservada dentro da célula pois ela conferia uma maior capacidade de obtenção de energia com a mesma quantidade de alimento e a mitocôndria "gostou" de ter a proteção de uma célula em sua volta. Além de outras evidências que os cientistas possuem, algo chama a atenção: na década de 60, Margit e Sylvan Nass descobriram que a mitocôndria possui DNA próprio! Ele contém cerca de 16.500 pares de base (os famosos A, T, G e C) sendo muito mais pequeno do que o DNA da própria célula, mas esse pouco é dele. Ele serve basicamente para desempenhar algumas funções da própria mitocôndria já que o manda-chuva da coisa toda vem do núcleo celular.

Só que uma coisa que os cientistas descobriram é que, ao contrário do que ocorre com o DNA nuclear, o DNA mt não tem mecanismo de reparro de erros. Ou seja, com o passar dos anos as mutações que ocorrem naturalmente na sua fita não seriam corrigidas. E outra descoberta: tirando algumas poucas exceções, o DNA mt é transmitido à prole apenas pela mãe. Com essas informações é possível para os cientistas traçarem uma rota sobre a origem de nossa espécie e por onde ela andou tanto no planeta e em qual época. Os cientistas usam os chamados marcadores genéticos que permite identificar e rastrear uma determinada porção de DNA e ver o que acontece com ele. Coletando amostras de diversas pessoas ao redor da Terra criou-se um mapa das migrações do homem até ele conquistar todos os continentes. Abaixo o "The Genographic Project" feito entre a National Geographic e IBM mostra um mapa interativo da jornada humana desde a África até a conquista de novas terras usando dados genéticos.

Clique na imagem para acessar o site.
Graças a essas técnicas, é possível determinar com um certo grau de sucesso que a espécie humana surgiu cerca de 200 mil anos atrás. Além disso, como o DNA mt é transmitido apenas da mulher para os filhos é possível estabelecer a origem de todas as pessoas com uma pessoa em comum (o ancestral comum mais recente). O resultado mostra que uma mulher africana cerca de 200 mil anos atrás é a ancestral comum de todas as pessoas da Terra. Essa suposta mulher foi apelidada carinhosamente de Eva Mitocondrial****. Não pense que foi uma única mulher que passou essa informação a todas as pessoas da Terra. O mais correto seria dizer que no passado um grupo de mulheres portadoras das mesmas características tiveram mais sucesso reprodutivo do que outros grupos humanos e como esse grupo prevaleceu sobre os demais, temos uma origem em comum com essa "mulher" de 200 mil anos atrás. O site citado acima também mostra o Y-cromossomial que, ao invés de usar DNA mitocondrial usa o cromossomo Y (responsável pelo sexo masculino em nossa espécie). Como ele é transmitido apenas de homens para os homens é possível estabelecer sua origem mais antiga. Mas isso é assunto para outro post.

A jornada da espécie humana ao longo desses milhares de anos é sustentada por evidências fósseis, por objetos antigos, pinturas e também pelo DNA. Sabemos que passamos por momentos difíceis no passado mas hoje somos um planeta com quase sete bilhões de pessoas (o que não quer dizer que estamos a salvo de uma catástrofe) e que, espero seja breve, estaremos explorando as estrelas com mais afinco e quem sabe no futuro existam paleontólogos e genticistas espacias, estudando a herança que nossa espécie deixou não apenas mais na Terra, mas no Universo. Como disse Carl Sagan, somos uma espécie jovem e destemida e apenas agora que começamos a colocar os pés nesse oceano cósmico. E as águas parecem convidativas.

Asteriscos explicativos:
*  Não interprete como sendo apenas o açúcar de doces. O amido, presente no milho por exemplo, nada mais é do que um cadeia de várias moléculas de glicose (um açúcar) unidos. No seu corpo, o amido é quebrado para deixar a glicose livre para ser usado.

** ATP ou Adenosina Trifosfato é uma molécula que as células usam como energia. Quando ocorre a hidrólise (quebra) de uma ligação do ATP ele libera energia para que os proteínas e enzimas façam seu trabalho no corpo. Quando ocorre essa quebra, o ATP vira ADP (Adenosina Difosfato). A glicólise ajuda a "religar" o fosfato usado em alguma reação química, transformando ADP em ATP novamente.

*** Quem está estudando ou lembra das coisas da época de escola sabe do Ciclo de Krebs (ou do Ácido Cítrico). Ele que é responsável pela maior parte da energia produzida por uma célula. Ocasionalmente essa etapa pode demorar um bocado e quando precisamos de muita energia em pouco tempo (como sair correndo) o piruvato produzido pela glicólise passa por um processo chamado de fermentação láctica. Há produção de menos energia do que no Ciclo, mas é mais rápida. O acúmulo de ácido láctico nos músculos que causa a famosa dor pós exercício.

**** O nome Eva foi dado justamente por causa da Bíblia sobre 'a primeira mulher'. Existiam outras mulheres nessa época, acontece que apenas uma linhagem de DNA mt sobreviveu e se espalhou para todas as pessoas da Terra. Talvez na hora os cientistas não pensaram na confusão que as pessoas poderiam fazer ao associar a Eva bíblica com a Eva mitocondrial. Muitas vezes associam que a Eva mitocondrial é a prova científica da existência da mulher bíblica. Mas isso não é verdadeiro.

Com imagem por Chris Devers em seu Flickr. O Atlas of the Human Journey vi originalmente aqui. Com informações de InfoEscola, Qwiki, Buzzle.com e Wikipédia [1] e [2]. Obrigado a @LiviaMaisaa por ter visto alguns erros ortográficos no texto. =P

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