[entrevista] Gilson Volpato - A profissionalização do cientista no Brasil

A profissionalização do cientista poderá influenciar o futuro de pesquisadores que trabalham diariamente
com instrumentos como os acima (exceto o 'Sr. Eppendorf' que tá de 'zóio' nos micropipetadores).

Ser cientista, tanto no Brasil como no mundo, é uma situação ambígua: graças ao conhecimento científico, o mundo e as pessoas são o que são. Mas graças ao mesmo conhecimento científico, o mundo e as pessoas são o que são. O que quero dizer é que o conhecimento científico permitiu alongar a vida humana e levar o homem para além dos limites da Terra mas também permitiu que o humano mostrasse o lado mais macabro de seu ser: Hiroshima e Nagasaki são os primeiros exemplos que aparecem em nossas mentes quando pensamos em ciência má.

Dados de 2006 da American Association for the Advancement of Science (AAAS) apontavam que o mundo (na época com mais de 6,5 bilhões de pessoas) possuía 5,8 milhões de pesquisadores, sendo 25% destes apenas nos EUA. Já em dado mais recente, de 2008, mostravam que no Brasil haviam mais de 133 mil pesquisadores, representando um pouco mais de 1,3 pesquisador para cada mil trabalhadores no país. Comparando com os EUA, o país apresentava na mesma época mais de 1,4 milhão de pesquisadores, sendo 9,4 pesquisadores para cada mil trabalhadores.

Recentemente, esses pesquisadores (muitos ainda conduzindo suas pesquisas como alunos de pós-graduação) começaram a serem apresentados a ideia de ter o que fazem como profissão. Encabeçado pela neurocientista Suzana Herculano-Houzel, a qual já enviou mais de 17 mil assinaturas para o Congresso Nacional pedindo que o cientista se torne profissão no Brasil[1]

O objetivo central da proposta é tornar os pesquisadores e demais 'fazedores' de ciência no país como trabalhadores merecedores de salário, férias e 13º salário. E, também, jornada de 44 horas semanais e declarar seus rendimentos ao imposto de renda. Entretanto, há muitas lacunas que devem ser mais bem esclarecidas, como aponta o Prof. Dr. Gilson Volpato, formado em biologia e pós-doutor no Institute of Animal Sciences, na Agricultural Research Organization, Bet-Dagan, Israel. Para ele, a proposta que irá impactar não apenas os cientistas naturais deverá permitir que a ciência brasileira seja mais competitiva lá fora.

Dr. Volpato atualmente é professor adjunto do Depto. de Fisiologia do Instituto de Biociências da Unesp de Botucatu. Viaja por todo o Brasil ministrando cursos e palestras sobre ciência, redação e metodologia científica. Além disso, escreveu vários livros sobre o assunto. Dois deles, inclusive, foram sorteados aqui no blog!

O blog entrou em contato com o autor de 'Ciência: da filosofia à publicação' para saber um pouco mais sobre a profissionalização do cientista no Brasil. Ele nos concedeu uma breve entrevista apontando os pontos positivos e negativos de tal profissionalização, que está disponível logo abaixo.



* * *

Prof. Dr. Gilson Volpato.
[Do Nano ao Macro] O que é a profissionalização do cientista?
[Gilson Volpato] Do que entendi da proposta, é dar a chance de tornar todo indivíduo que faça pesquisa em um profissional reconhecido, com direitos trabalhistas como qualquer outro.

[Blog] Ela estaria de acordo com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o que inclui férias, 13º salário e horas-extras?
[GV] Novamente, do que entendi da proposta, sim. A busca da proposta é exatamente permitir que pessoas possam ser contratadas para fazer pesquisa, dentro dos trâmites normais das legislações de trabalho, por ex., a CLT.

[Blog] Qual tipo de cientista essa profissionalização tem como alvo: daquele que trabalha frente à bancada de um laboratório apenas? O que diz sobre os cientistas que trabalham em campo e, muitas vezes, não tem lugar/condição de “bater ponto”?
[GV] Acredito que seja para qualquer cientista, independente de se faz trabalho em laboratório ou no campo. Afinal, o local de trabalho é mero detalhe técnico para realização da pesquisa.

[Blog] Quais profissionais seriam cobertos pela criação dessa categoria profissional? (por exemplo, um biólogo é um cientista e, portanto, estaria dentro dessa categoria. O físico também e o químico idem. A ideia dessa proposta é profissionalizar apenas os cientistas da natureza. Quanto aos outros cientistas de humanas, eles parecem um pouco fora dessa área. Isso procede?)
[GV] Acho que se aplica a todos que fazem ciência, independente de área, seja um biólogo, um médico, um físico ou alguém da educação.

[Blog] Quais são os pontos favoráveis à criação da profissão ‘cientista’?
[GV] Não vejo pontos positivos para o cientista contratado. Aparentemente, ele seria alguém chamado de cientista, o que pode enaltecer certos egos acadêmicos. Ele teria um salário, mas não vi ainda como fazer isso virar uma carreira (que é o que importa) para não cair no subemprego. Se virar carreira, não vi como se diferenciar do técnico de nível superior, cuja profissão e carreira já existem, e nem do pesquisador que está num instituto de pesquisa.

[Blog] E os contrários?
[GV] O que me parece é que estão querendo resolver um problema, mas com a fachada de outro. Perguntar a um pós-graduando se ele quer ser chamado de cientista e receber salário ao invés de ser chamado de aluno e ter bolsa é fazer uma pergunta que direciona a resposta. É lógico que os alunos responderão que sim... e ainda terão férias e 13º. Veja, a questão não é essa.

Enquanto alunos de uma instituição de ensino, eles estão estudando para chegar a algo. Têm a chance de estudarem recebendo uma bolsa, o que ajuda muito. O fato de alguns orientadores transformarem isso em subemprego, colocando esses alunos para fazerem suas pesquisas e cuidarem de seus laboratórios é um erro que não se resolve da forma proposta. O trabalho na pós-graduação deve ser focado exclusivamente para a formação científica do aluno. A PG é uma escola para formar cientistas. Veja que a Capes, a cada tempo, muda a avaliação para tentar focar a ação dos orientadores nesse sentido. Agora, por exemplo, começa a dar mais peso para as publicações das teses dos alunos, para que os orientadores entendam que orientação é formação científica do aluno. Há pesquisas boas para isso e outras que o orientador terá que fazer sozinho porque não cabe na proposta de pós-graduação (tempo e condições limitadas). Eu ouvi a propositora da tal profissão do cientista dizer que tinha projeto engavetado e dinheiro para contratar um cientista, mas que não podia fazer isso porque faltava regulamentação para usar esse dinheiro em tal finalidade. Entendo essa preocupação, mas a solução não pode ser a proposta de uma profissão de cientistas. Acho que os cientistas têm que resolver suas pesquisas. Se não conseguem fazer, não fazem ou fazem parcerias. Criar uma profissão para resolver esse problema é muito superficial. E me respondam: esse cientista (profissional) contratado teria autonomia para exercer a profissão de cientista? Poderia idealizar seus próprios projetos? Teria seu próprio laboratório? Teria seus orientandos? Ou apenas seria o empregado de um cientista (professor universitário ou pesquisador em instituto de pesquisa) sênior? E, uma vez contratado, seguiria até a aposentadoria caso quisesse? E se o pesquisador sênior aposentasse ou a verba do projeto terminasse?

Espalhar que podemos mover uma ação judicial e fechar laboratórios porque os orientadores estão ilegais é querer criar pânico na sociedade e isso não ajuda em nada o desenvolvimento do país. Um aluno de pós-graduação regularmente matriculado numa pós-graduação reconhecida pela Capes, que realize seu trabalho de mestrado ou doutorado (previstos na regulamentação), não está fazendo nada errado. Se esse aluno está sendo usado para outras coisas, isso é caso pontual e tem que ser tratado pontualmente. Não precisamos de uma profissão para isso. Se obter o título de graduação torna o indivíduo um profissional, então que busque emprego para ser um profissional (biólogo, médico, agrônomo, pedagogo, físico teórico etc.). O problema é que o mercado está abarrotado, e isso só ficará pior, pois a política brasileira não foi na formação de excelência, mas baseada em formar um monte para ver se sobram alguns (a tal máxima de “o mercado tria”). Com isso temos o quadro atual. Sem doutorado e sem pós-doc, raramente consegue-se emprego na carreia científica nas instituições públicas brasileiras, particularmente nos grandes centros. Quem escolhe seguir ciência no Brasil tem que entender que esse está sendo o caminho. Acho que deveríamos lutar para melhorar as condições de universidades criadas mais recentemente em regiões menos privilegiadas do Brasil; com isso avançaríamos nas oportunidades reais para esses profissionais. Visito semanalmente alguma universidade brasileira, em algum lugar deste país, há muitos anos. Tenho uma visão concreta e factual do quadro de oportunidades de trabalho nas universidades brasileiras. Melhorando isso, aumentamos a chance dos nossos pós-graduandos irem para esses locais e fazerem ciência de gente grande (alguns vão, mas muitos evitam e ficam sobrando em “subempregos” nos locais “nobres” do Brasil).

Há outras razões práticas. Por exemplo; dizem que as bolsas seriam transformadas em salário... se for isso mesmo, o valor da bolsa, ao virar salário, seria líquido ou bruto? Se líquido, o governo teria que aumentar a verba destinada a esse fim, o que possivelmente resultasse em redução no número desses salários; se bruto, o valor da bolsa reduziria muito (algo em torno de 30 a 40 %). Além disso, dizer que tem que implementar a proposta e resolver os problemas depois, como tem sido aventado, é muito arriscado e pode ser irresponsável. Acho que merece um estudo mais detalhado, mas para isso deveria haver um apelo mais sólido e menos emocional.

Acho que a proposta, por mais bem intencionada que tenha sido feita, foi pouco discutida na academia (que é o foco da questão) e já conseguiu entrar em vias políticas. Como na ciência, equivale a discutir pouco um trabalho e divulgá-lo amplamente pela internet... corremos o risco de divulgar equívocos. Quando pessoas de maior calibre científico opinarem teremos um quadro mais maduro. Mas, em minha percepção, não vejo como essa proposta ajudará nossos cientistas e nem nossa sociedade. 

Se precisamos melhorar as condições de vida e de futuro de nossos pós-graduandos, devemos então fazer isso, lhes dando oportunidades reais de emprego, onde serão os donos de sues próprios narizes. Acho que ganharíamos mais se tentássemos fazer com que nossos doutores fossem, de fato, cientistas, mesmo sem carteirinha. Deveríamos  gastar esse tempo para discutir que não se forma doutores ensinando o aluno a fazer uma tese. Ser cientista é muito mais do que nossa pós-graduação está formando. Se falam em profissão de cientista, eu pergunto: cadê os cientistas?

O Brasil está mal das pernas na ciência, com nobres exceções, porque a ciência desenvolvida aqui tem muitos equívocos. Se não temos visibilidade é porque não temos qualidade. Façam uma análise crítica de nossa revistas cientificas (novamente, salvo nobre exceções). Temos que investir pesado em corrigir isso. Nas dezenas (geralmente entre 60 a 80) de cursos que ministro anualmente (público entre 100 e 1300 alunos/curso) sobre ciência e pesquisa, percebo claramente como está nossa ciência, dos locais mais nobres aos mais pobres. Esse quadro tem que ser mudado. Esse é o foco e para isso não estão olhando. Não adianta dizerem que o Brasil precisa de visibilidade e que conseguiremos isso publicando com gente famosa do exterior. Não é essa visibilidade que precisamos e acho absurdo que gestores de ciência no Brasil proponham isso. Precisamos de visibilidade que seja consequência de nossa competência e qualidade. Esse é o caminho. Olhar para os centros nobres da ciência brasileira tampouco resolve. O Brasil será bom de ciência quando respirarmos ciência, quando universidades de várias pontas do Brasil produzirem ciência de qualidade.

[Blog] O senhor tem conhecimento de como é a profissionalização do cientista em outros países?
[GV] Não conheço muito, mas o que tenho visto, particularmente nos Estados Unidos, Inglaterra, Canadá e Israel, é haver verba para contratos temporários onde desenvolvem pesquisa de um projeto coordenado por um cientista sênior. Lógico que o fato de existir ou não existir no exterior é irrelevante, porque uma proposta aqui pode ser completamente original ou requerer ajustes de alguma proposta já existente. O fato principal me parece ser que qualquer profissão idealizada deve ser plena, garantindo uma carreira, boas condições de trabalho e que seja necessária.

[Blog] Muitos pós-graduandos (que seriam alvo dessa profissionalização) acreditam que, se aprovada, órgãos de fomento não apoiariam seus projetos e muitos veem como sendo algo ruim (já que tais órgãos não aceitam o que o bolsista tenha emprego para ter a bolsa). Isso realmente é um problema sério ou os órgãos de fomento pensam em ajudar de outra forma a pesquisa desse cientista?
[GV] Acredito que a vinculação da bolsa ao fato do aluno não ter emprego precisa ser revista. A bolsa visa competência ou situação monetária. Isso tem que ser resolvido. Podemos até ter as duas coisas. Como faltam bolsas, então as pessoas começam a arrumar regrinhas para dividir as poucas existentes (nem são tão poucas, mas enquanto faltar algumas, serão poucas). Se o Brasil quer investir em ciência, então tem que investir em formar cientista (seja qual for sua profissão na área das ciências). O problema é que o Brasil (nossos políticos) não acredita na ciência. Se acreditasse, buscaria se basear nas respostas dos cientistas quando confrontado com questões técnicas. Mas não é isso o que faz. Veja, por ex., o que ocorreu com o código florestal. É impressionante como o Brasil investe em ciência, mas não usa esses produtos científicos quando precisa... opta mais frequentemente por decisões políticas. Isso é contracenso. Nesse quadro, acho que uma coisa é o investimento em pesquisa e outra o investimento em bolsas. As bolsas permitem que as pessoas sigam seu estudo com certo suporte... mas temos que ter a compreensão de que bolsa não é salário, é passageiro. A luta tem que ser para que haja vagas para a demanda criada e induzida pelo governo para o caminho da universidade e de lá para a pós-graduação. O Brasil tem ampliado universidades, mas a contrapartida de pessoal (docentes e técnicos) tem ficado a desejar. As vagas aumentam, os cursos duplicam, mas as estruturas (físicas e humanas) ficam a desejar. Isso tem que ser revisto. Isso é muito mais importante e bom para os pós-graduandos do que a carteirinha de cientista. Na verdade, quem é cientista, o é com ou sem carteirinha.

[Blog] Como o senhor vê essa questão em longo prazo?
[GV] A longo prazo, caso a tal profissão do cientista vigore, talvez tenhamos mais papers, mais cientistas seniors satisfeitos, mas o custo dos que realizam a pesquisa será alto. A falta de empregos para se fazer a própria pesquisa continuará. Mas, não tenho a bola de cristal e torço para que o que ficar seja bom... só peço discussão mais ampla e que o aporte político não fale mais alto. E que repensemos a formação de nossos cientistas, que tem mais se assemelhado a formação de técnicos especializados.

[Blog] Por fim, gostaria de saber do senhor se existe mais alguma consideração importante a ser dita sobre o assunto e uma mensagem para os graduandos e pós-graduandos que acessam o blog.
[GV] Meu recado a esses graduandos e pós-graduandos é simples. Façam o que têm paixão e busquem sempre a excelência. Não se contentem em serem os melhores da vizinhança, busquem ser os melhores do mundo. Não se privem de visitar outros países, outros cientistas. O Brasil precisa desse tipo de profissional. 

Planejem sua vida a partir de sua visão de mundo (seu grande sonho, aquilo que o fará morrer feliz por ter perseguido), reconhecendo plenamente sua missão (aquilo que seu perfil profissional o permite fazer em direção à sua visão). Planeje usa vida partindo do final para o começo. Veja onde deverá chegar daqui há 30 anos... então, retroceda e veja onde deverá estar daqui há 20, há 10 e há 5 anos. Isso lhe permitirá saber o que deverá fazer nos próximos anos e também no próximo mês. Tudo o que estiver nesse trajeto será algo importante e que você deve priorizar. Se sua visão é nobre, suas escolhas serão nobres.

É esse profissional que o Brasil precisa. Menos oportunismos, menos egoísmo, menos política... mais competência, mais honestidade e mais idealismo e paixão.

* * *

O blog Do Nano ao Macro agradece o professor Gilson Volpato em ceder um espaço de sua agitada agenda para responder nossas perguntas. E você, querido leitor, o que acha da profissionalização do cientista no Brasil? Existe algum ponto que você conheça e acha importante que não foi debatido ainda? Conte para gente.

Informações extras:
[1]: entrei em contato com a Suzana mais de uma vez sobre ela contar mais sobre o projeto. Infelizmente ela não retornou o contato. Entretanto, ela deu diversas entrevistas em vários veículos de comunicação brasileiros. Uma busca no Google retornará alguns resultados.

P.s.: O conteúdo da entrevista possuí caráter informativo, visto sua relação com a ciência brasileira.

Com informações de:
AAAS. Shares of World* S&E Researchers, 2006. Disponível em: <http://www.aaas.org/spp/rd/world06se.pdf>. Acessado em: 16 nov. 2013.
UNESCO. Unesco Science Report 2010. Disponível em: <http://www.uis.unesco.org/Library/Documents/UNNESCOSR10-eng.pdf>. Acessado em 16 nov. 2013.
Informações obtidas em Revista Exame. Algumas informações do autor foram obtidas no CV do mesmo (acessado em 16 nov. 2013). A imagem que abre a postagem é uma montagem de imagens obtidas no Instagram de @liviamaisaa. A imagem do autor foi enviada pelo mesmo para divulgação no blog. Possui todos os direitos reservados ao autor.

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