Sobre a Terra Plana

Carro Tesla no espaço mandado pela SpaceX (ambas as empresas são de Elon Musk).
Duvido que os investidores da SpaceX iriam dar dinheiro para o cara se ele não soubesse um pouco de física.

A ciência é feita andando um passo de cada vez. Coisas que achamos serem certas no passado foram destruídas, colocando-as apenas como um capítulo na história da humanidade. É sempre assim: a medida que nosso conhecimento avança e o nosso entendimento da realidade melhoras, as ideias e explicações antigas sobre como as coisas funcionavam e que não conseguem mais explicar esses novos conhecimentos vão ficando para trás. É natural e benéfico para todos nós.

Um ótimo exemplo é o modo como explicamos as doenças. Hoje sabemos que muitas doenças são causadas por micro-organismos que existem em todos os lugares. Bactérias, fungos e vírus que são invisíveis aos olhos humanos, mas que ganham as lentes dos microscópios. Hoje eles são comuns ao nosso conhecimento - tanto que vivemos falando sobre eles em nosso dia-a-dia, desde a preocupação com a vacinação para febre amarela até você ter comido alguma coisa estragada e ter dado uma diarreia infernal - e nem mais nos preocupamos em pensar em algo diferente para explicar a origem de muitas doenças. Nós nos embasamos na teoria microbiana, que explica como muitas doenças surgem e como esses micro-organismos agem em nossos corpos e no ambiente ao nosso redor.

Mas nem sempre foi assim. Até um tempo atrás os médicos e cientistas naturais acreditavam que não eram coisas microscópicas que causavam doenças: eram os cheiros ruins. Os médicos se baseavam na teoria miasmática, em que miasmas, odores e gases liberados pelas doenças ou pelos lugares pútridos eram os responsáveis pelas doenças. Isso era tão sério que provavelmente você já deve ter visto a imagem ao lado. O médico da peste era bem conhecido durante a Idade Média, justamente por tratar os enfermos acometidos pela Peste Negra. A máscara com bico não era a toa: para eles, como o cheiro ruim que causava a doença, e o bico armazenava um chumaço de ervas aromáticas, para perfumar o ar e, supostamente, evitar que o médico contraísse a doença por respirar o ar fétido.

Ainda bem que os trabalhos de grandes nomes no passado, em especial a John Snow[1] e Louis Pasteur, esse pensamento foi sendo modificado. As evidências de que existia uma vida microscópica que causava essas doenças - e não o cheiro ruim - ficaram cada vez maiores, e a teoria miasmática foi sendo colocada de lado.

Portanto, as ideias mudam de acordo com os novos conhecimentos que temos acerca do mundo onde vivemos. E isso vale inclusive para o próprio mundo. A ideia de que a Terra fosse plana não é nova. E nem surgiu na Idade Média. A humanidade, desde quando começou a ter mais tempo para pensar em coisas que iam além de caçar algo para comer - ou evitar ser a caça de alguém - pensou em coisas complexas, sobre a sua própria vida, a vida das coisas ao redor, o espaço onde vivia, e o que havia sobre suas cabeças. De certa forma, parece que as principais civilizações antigas acreditavam que a Terra deveria ser plana - como as civilizações da idade do Bronze na região do atual Mediterrâneo, os gregos antigos, indianos e chineses, além de civilizações ameríndias. Algumas cosmologias da Terra plana antiga desses povos eram bem complexas, explicando inclusive sobre os diversos fenômenos astronômicos existentes, como o movimento de planetas e eclipses.

Mas, ainda durante o período Antigo, a ideia de que a Terra fosse plana não era mais bem aceita. Com o avanço da matemática e do entendimento de certos fenômenos astronômicos, a ideia da Terra plana começou a sofrer abalos. Pitágoras, por exemplo, já acreditava que a Terra fosse esférica e não plana. E, ao contrário do que muitos acreditam, durante a Idade Média, a maioria das pessoas aceitavam que a Terra fosse redonda - o que se questionava na época era se a Terra era ou não o centro do Universo, como podemos recordar com o que aconteceu com Giordano Bruno e Galileu Galilei.

Gigantes da ciência fizeram história ao aceitar a "redondeza" da Terra: Kepler, Galileu, Newton, Einstein e todos os cientistas modernos que trabalham ao redor do mundo aceitam o fato de que a Terra é redonda. Tecnicamente, o mundo moderno funciona graças ao mundo ser redondo[2].

Contudo, o mundo está vendo - sobretudo de 2016 para cá - uma crescente defesa da ideia de que a Terra não é redonda. Para muitos, a Terra seria plana. Plana como uma pizza e não redonda como uma laranja. Naturalmente, para os conhecedores da ciência moderna, a concepção dessas ideias beiram o bizarro. Mas, aparentemente, não é isso que está acontecendo: as pessoas realmente creem nisso. A ponto de receber isso no Twitter do blog:


No Twitter, compartilhei uma matéria da BBC falando sobre a Terra Plana e sobre cada vez mais crentes nessa teoria surgirem. Graças as redes sociais, pessoas que acreditam na Terra plana podem debater ideias e construir explicações para os fenômenos naturais. Além de, é claro, tentar derrubar a Terra redonda.

A imagem que ele reclamou que está errada é essa (extraí da própria matéria):

Matéria original pode ser lida aqui.

Bom, vamos deixar o breve xingamento de lado - ser chamado de babaca hoje em dia na internet é quase um alívio, comparado com o que encontramos na seção de comentários internet afora - e vamos focar nas outras coisas. Ele disse que era preciso pesquisar direito para achar uma imagem que condiz com a teoria da Terra plana. Pois bem, pesquisei. E realmente a imagem da matéria está errada. A Terra, de acordo com os terraplanistas, é assim:

Modelo mais aceito para a Terra plana, em uma projeção azimutal equidistante.

O mundo para os terraplanistas não é aquele em que se defendia no passado, com os oceanos nos rodeando, as águas caindo pelas beiradas como um prato cheio. As bordas do mundo seriam, na realidade, feitas de gelo - a Antártica seria não um continente, mas uma imensa massa de gelo que circunda o mundo todo, fechando o planeta pelas beiradas, como uma pizza com borda recheada.

Entretanto, o mundo para o terraplanista também não é simples: existem inúmeros questionamentos atuais que os terraplanistas precisam explicar para que sua teoria se encaixe nas observações do mundo moderno. São coisas desde a gravidade, o conceito de dia e noite, eclipses, estações do ano e, naturalmente, conhecimentos atuais de astronomia e física.

Eu, naturalmente, comecei a escrever sobre como a ciência vê o universo atual e como os terraplanistas explicam as mesmas coisas. Mas percebi que o texto estava ficando confuso, já que estava simplista demais em explicar os fenômenos sob a ótica da ciência. Além disso, o texto estava ficando grande demais e, provavelmente, quem aceita a Terra ser redonda pularia a parte científica da explicação e quem é terraplanista simplesmente não leria aquilo que não interessa. Por isso, resolvi mudar um pouco as coisas.

"Se a Terra não fosse plana, seria chamado de redondeta e não planeta"
Sim, já vi isso por aí. Apesar de alguns tratarem essa associação como brincadeira, alguns terraplanistas levam essa afirmativa à sério. Seria uma forma de dizer que os povos antigos sempre estiveram certos, já que sempre saberíamos que estamos vivendo em um planeta plano. Mas, na realidade, planeta não tem nada a haver com plano. O termo planeta, como nós usamos atualmente, vem do grego "πλανῆται" (planetai) que significa 'viajante' ou 'errante'. Eles usaram esse termo pelo simples fato de, quando observavam o céu noturno, alguns pontos brilhantes no céu viajavam em relação ao pano de fundo de estrelas fixas[3] de forma mais rápida e errante. Com o tempo, os gregos e demais povos começaram a nomear esses corpos errantes com os nomes que estamos acostumados (Vênus, Marte, Júpiter). Quando se percebeu que a Terra era mais um desses corpos errantes que viajavam juntos pelo espaço com o Sol, foi natural chamar a Terra de planeta também.

Portanto, dizer que devíamos chamar o planeta de redondeta só por que ele seria redondo não faz o menor sentido.

"A Antártica[4] é a beirada do mundo e, por isso, não deixam ninguém ir lá. Ele é o lugar mais protegido da Terra".
A visão de mundo terraplanista é, como vimos acima, que o mundo é cercado por gelo e a Antártica seria esse paredão de gelo que fecharia o mundo, impedindo que alcançássemos a borda. O acesso à Antártica é restrito a apenas alguns países, que o dividiram de forma precisa e quase militar para evitar que qualquer curioso chegasse e descobrisse toda a verdade. Os governos do mundo todo se envolveram para evitar que a tal verdade de que a Terra é plana seja descoberta.

A explicação é boa e se baseia em algumas verdades: existe realmente um tratado entre alguns países signatários, o chamado 'Tratado da Antártica', o qual os países abrem mão de reclamar posse do continente gelado, deixando de lado as reivindicações em prol da pesquisa científica em nível de cooperação internacional. O tratado original, assinado em 1959 com 12 países, hoje possui mais de 30, com o Brasil assinando e mantendo uma base desde 1984 na região, a Estação Antártica Comandante Ferraz[5].

Polo Sul Cerimonial, localizado a poucos metros
do Polo Sul geográfico. As bandeiras são dos 12 países
signatários originais do Tratado. Clique para ampliar.
Mas, naturalmente, a explicação mais simples que se tem para que as pessoas não possam ir na Antártica descobrir a beirada do mundo pode ser mais simples que a conspiração de governos: lá faz frio, muito frio. E não tem hotéis para as pessoas passarem a noite por lá.

Na realidade, o acesso difícil á região vai bem além do frio, naturalmente. A cidade de Novosibirsk, na Sibéria, registra médias de temperaturas mais frias durante o inverno que a Estação brasileira na Antártica[6]. Embora as temperaturas mais baixas já registradas no planeta sejam na Antártica[7], a temperatura não é o principal empecilho para que as pessoas viajem até o continente gelado. A principal razão é que a Antártica não é uma região para turismo. Desde o Tratado firmado entre os países, o continente foi e é utilizado para pesquisa científica. O acesso restrito se deve que as apenas pesquisadores voltados para a análise de clima e astronomia visitam esse espaço (e apenas durante o verão, onde as condições são mais favoráveis para permanecer por horas fora da Estação de pesquisa). O ser humano altera demais o ambiente onde passa e levar a uma onda de turismo no lugar atrapalharia o desenvolvimento de pesquisas na área, que exigem que o ambiente não seja alterado. Além disso, a vida no Antártica é muito frágil e nossa presença poderia levar a modificações sérias em seus habitats. Mesmo longe já causamos impacto no continente gelado - vide o buraco na camada de Ozônio.

Ou seja, dizer que existe uma conspiração para que as pessoas não saibam como é a Antártica de verdade - que seria um barreira gigantesca de gelo que impede que fôssemos além dela - é a coisa mais nada a ver.

Para falar a verdade, se a Terra fosse plana mesmo, eu veria essa barreira gigante de gelo daqui de casa. E, bem, não é isso que eu vejo.

"A ONU conspira junto com os governos para esconder a verdade. Mas o emblema da ONU não nos deixa enganar"
A ONU (Organização das Nações Unidas), fundada após a Segunda Guerra Mundial, teve o objetivo de organizar o mundo para evitar maiores problemas. Com o entendimento de que precisávamos nos organizar e colaborar a nível mundial, entramos no mundo moderno como o conhecemos. Tratados internacionais de comércio, educação e saúde só foram possíveis graças ao empenho dos países membros das diversas organizações que compõe a ONU.

A ONU ela representaria a união de todos os países (ao menos os países-membros) e, portanto, ela não responde por nenhuma bandeira em específico. Por isso, a ONU possui sua própria bandeira, que você deve ter visto por aí.


O emblema da ONU é o mundo em uma projeção azimutal equidistante, centrada no Polo Norte e com extensão de até 60° de latitude sul. Ornamentada com folhas de oliveira - simbolizando a paz - o emblema coloca os países-membros sem delimitação, em uma mensagem de união, paz e segurança.

Mas, naturalmente, os terraplanistas enxergam nesse emblema uma espécie de mensagem oculta, talvez do projetista do desenho que sabia da verdade e queria deixar esse easter egg para a humanidade. Para os terraplanistas, o símbolo da ONU nada mais é que a visão da Terra plana em todo o seu esplendor, sendo jogado na cara das pessoas até então.

Algumas projeções cartográficas conhecidas.
Bom, o que acontece é que a projeção azimutal gera, de fato uma imagem mais harmoniosa para a proposta do emblema (já que a imagem fica redonda), mas isso não significa que a Terra seja assim. Projeções cartográficas existem aos montes e seus trabalhos existem desde, pelo menos, ao período das Grandes Navegações. O grande número de projeções cartográficas existem para tentar reduzir o problema de projetar um superfície tridimensional - no caso a superfície terrestre - em um plano 2D - o mapa em si, o papel impresso. Todo tipo de adaptação dessa projeção acaba gerando distorções, algumas bem bizarras, como essas aqui nesse parágrafo. O site 'The True Size of' traz uma ferramenta bem legal para quem quer ver em como as distorções nos mapas escondem o tamanho real dos países. Escolha um país e arraste-o para outras partes do mundo e se surpreenda.

Usar do tipo de projeção escolhido para fazer o emblema da ONU não faz o menor sentido. É apenas uma projeção: podiam ter escolhido a projeção de Mercator, a mais conhecida entre nós e você deve ter visto na escola e é a utilizada pelo Google Maps em projeções 2D. Mas convenhamos, fazer um emblema com essa projeção ia ficar bem menos elegante.

"É tudo uma conspiração. Governo e cientistas escondem a verdade"
Governos realizam ações por trás dos panos em prol da segurança nacional e de sempre estar na frente dos demais países. Cientistas conduzem pesquisas e algumas são mantidas em segredo para evitar vazamento de informações e roubo de dados que poderiam gerar patentes importantes para o instituto de pesquisa ou universidade. Mas esconder da população que a Terra seria plana. Por qual motivo isso estaria sendo feito, na realidade?

Eu sou um cientista. Trabalho com pesquisa e estou a cada dia aprendendo mais e mais. Uma coisa que eu aprendi logo de primeira foi que todo cientista quer ser o primeiro a fazer alguma coisa. Ser reconhecido na área em que atua. Na física temos Newton, Einstein. Na biologia temos Darwin, Pasteur. Na química temos Pauling, Lavoisier. Nós queremos figurar ao lado dessas figuras importantes. Agora me diga, você acha mesmo que todos os cientistas do mundo iriam simplesmente ficar quietos se realmente a Terra fosse plana?

Garanto que não.

A NASA muitas vezes é acusada de ganhar bilhões em
esconder a verdade das pessoas. Duas dúvidas que pairam
são: ganham de quem? E por que?
Somos doidos pelo novo. Pelo desconhecido. Saber que a Terra é plana e contar isso colocaria o descobridor para todo o sempre na história da ciência. "Cientista refuta Einstein, Newton e todos os outros fodões da ciência". Até eu queria fazer isso!

Para sermos cientistas, não existe uma seleção em que você tem que assinar um contrato em que um dos itens é: jamais dizer que a Terra é plana. Sério. Os cientistas não conseguiriam esconder a verdade por muito tempo. Isso porque nós dependemos de entender a realidade para podermos fazer as coisas. Não tem como.

Naturalmente, isso se aplica aos governos também. Qual a graça de esconder isso da população? Imagina um país em quase guerra um com o outro - não é difícil de imaginar isso atualmente, se você acompanha os noticiários -. Uma forma de reduzir a confiança da população de um país é fazer ele não confiar no seu próprio governo. Agora imagina o país soltando a bomba de que a Terra é plana e que a população foi enganada todo esse tempo. Pois é. Se isso fosse verdade, essa informação teria "vazado" a muito tempo. Vazaram tantas coisas de espionagem e coisas piores dos governos ao redor do mundo mas não tem nenhuma menção sobre o fato de esconder a verdade da Terra para as pessoas.

Não tem sentido nenhum acreditar nessa conspiração. Não é conspiração. É mais sensato você cobrir sua webcam contra espionagem governamental do que o governo estar escondendo essa informação de você.

"E bla´blá blá"
O mundo moderno se moldou graças ao entendimento de como são as coisas ao nosso redor. E isso se aplica ao próprio mundo em que vivemos. Se hoje utilizamos do GPS (Sistema de Posicionamento Global, em inglês) para nos achar dentro de uma cidade desconhecida - ou encontrar alguém nas redondezas que estão interessadas em passar uma noite mais quente com a gente - e da internet para conversar com amigos e familiares ao redor do mundo e compartilhar notícias verdadeiras e falsas sobre a Terra, tudo isso fazemos pelo simples fato de aceitarmos a "redondeza" da Terra. Se enviamos sondas para o espaço e entendemos os sinais do espaço profundo que recebemos e captamos em nossas antenas, é por que compreendemos a física por trás de como o universo funciona: e isso se aplica também ao formato de nosso planeta.

Poderia continuar a falar sobre todas coisas que os terraplanistas utilizam para justificar sua visão de mundo, desde explicações sobre a gravidade, o dia e a noite, estações do ano e como o sol, lua e demais corpos ficam pendurados na abóbada celeste.

Carl Sagan (1934-1996) já disse:
"Não é possível convencer um crente de coisa alguma, pois suas crenças não se baseiam em evidências; baseiam-se numa profunda necessidade de acreditar."
Ou seja, as pessoas simplesmente acreditam naquilo que acreditam pelo simples fato de satisfazer suas necessidades. A aceitação da parte deles de que a Terra é plana pode ter motivos religiosos, pseudohistóricos ou até mesmo dar a ilusão de libertação contra o atual sistema educacional e político. Como se a disseminação de notícias contraditórias pelas redes sociais fizessem a pessoa que começa a crer em Terra plana como se estivesse a par de informações privilegiadas, como se estivesse "por cima da carniça[8]".

A Terra vista da Apollo 17 em 1972. Conhecida como
'Bolinha Azul', essa talvez seja uma das imagens mais
conhecidas do planeta Terra.
Na realidade, a crescente aceitação das pessoas para temas como a Terra plana, antivacinação, pseudohistória, medicina alternativa, entre outros, só mostram em como o mundo pode ser algo terrivelmente bizarro. Estamos vivendo a era da informação, onde as notícias são consumidas quase no mesmo instante em que acontecem. Mas, ao mesmo tempo, estamos vivendo a era em que há tanta informação, mas tanta informação, em que até mesmo notícias falsas - fake news - estão ganhando vantagens sobre as notícias verdadeiras. A disseminação de conteúdos que nada possuem de verdade ou evidências ao seu favor são propagadas em uma velocidade e proporções assustadoras hoje em dia. O jeito em como a informação é transmitida é facilmente assimilada pelas pessoas que, somado muitas vezes a falta de um conhecimento mais profundo, acabam tomando aquilo como verdade. O chamado efeito Dunning-Kruger atinge algumas pessoas que, por lerem ou serem apresentados de forma superficial a um determinado assunto (sim, estou falando para você, YouTube[9]), acreditam que possuem conhecimento superior a um especialista, achando que estão mais bem preparados para lidar com qualquer situação do que qualquer outra pessoa.

A natureza não é tão simples o quanto gostaríamos que ela fosse. Se você usa o GPS no seu celular para encontrar uma paquera no fim de semana, talvez nem faça ideia da quantidade de equações que o aplicativo e os servidores do aplicativo estão realizando para indicar as melhores pessoas para você ao seu redor. Não faz ideia da quantidade de equações que os satélites GPS precisam fazer para saber sua posição na Terra, manter ele próprio em órbita no planeta e para compensar as diferenças de tempo entre o que se passa no satélite e na Terra - sim, a relatividade de Einstein está envolvida nisso tudo. As coisas não são simples como uma pizza com borda recheada na sua mesa, pronta para ser devorada. A natureza seria mais como uma rapadura que você terá de comer com colher de plástico.

Mas, querer mudar a natureza para se encaixar em uma cosmovisão mais simplista não faz da pessoa a pessoa mais esperta do mundo. A ciência tenta entender as coisas como são. A natureza não tem obrigação de ser fácil para a gente. Se ela é complicada, as explicações são complicadas. Aceitar uma visão de mundo que chega a ser mais antiga que a própria escrita chega a ser um suco na boca do estômago da humanidade. Avançamos tanto e construímos tanto para chegarmos na era moderna com celulares no bolso com processadores poderosos que nos conectam a qualquer pessoa no mundo para gravar um maldito vídeo dizendo que a Terra é plana?!

Faça-me o favor!

🌍🌎🌏

Rodapé:
[1]: não, não é o Jon Snow, personagem da coletânea de livros 'As Crônicas de Gelo e Fogo' de George R. R. Martin e da série de TV 'Game of Thrones', produzido pela HBO. "Você não sabe de nada".

[2]: sabemos, na verdade, que o melhor modelo matemático que se aproxima da forma da Terra é a elipsoide, já que a Terra não é uma esfera perfeita: ela é levemente achatada nos polos. Esse fenômeno é provocado pelo movimento de rotação do planeta. Contudo, o melhor modelo terrestre que temos é o geoide, que leva em consideração as flutuações da gravidade na superfície do planeta. Mas, para facilitar a assimilação da conversa e ficar claro sobre que forma da Terra estamos falando, tratarei a Terra como sendo redonda ou esférica em oposição à Terra ser plana.

[3]: sabemos hoje que as estrelas não são fixas, mas como estão mais distantes que os planetas, seu movimento é muito mais lento, sendo necessário centenas de anos para observar alguma mudança significativa a olho nu.

[4]: sempre já debates sobre se é Antártica ou Antártida. Etimologicamente, o mais correto é com a letra C, já que a palavra antártica seria para indicar o oposto ao Ártico (anti-ártico). Mas, devido a popularização de algumas obras que usavam a palavra Antártida (talvez uma lembrança da mítica Atlântida), o termo foi e é usado amplamente também. Por conveniência, prefiro o uso com letra C. Mas, naturalmente, se você usa com letra D, não deixa de estar correto. Sabendo que estamos falando da mesma coisa, está tudo bem 😊.

[5]: em 2012 a Estação sofreu com um incêndio que comprometeu 70% das instalações. Dois tenentes morreram na época. Uma nova Estação está sendo construída e deverá ficar pronta em 2019.

[6]: em Novosibirsk, a média de temperatura no mês mais frio gira em -16,5 °C enquanto que a Estação Comandante Ferraz registra -9,7 °C.

[7]: a Estação Vostok, localizada próxima ao Polo Sul magnético do planeta, registrou a mais baixa temperatura na Terra, em 1983, de -89,2 °C. Na realidade, mesmo no verão as temperaturas nunca ficam acima do zero grau Celsius. A temperatura mais quente registrada na base foi de -14 °C, com médias não menor que -30 °C.

[8]: não sei se essa expressão é amplamente conhecida. Onde moro, quando se diz isso significa que a pessoa acha que está arrasando com alguma coisa e que ficou por cima dos outros, mas na verdade não passa de mais um urubu em cima da carniça, que não é lá grande coisa.

[9]: não estou dizendo que tudo que existe no YouTube ou nas redes sociais são ruins. Mas devemos ter sempre em mente que, quando você é apresentado a algo na internet aquilo é, muitas vezes, uma breve panorama da coisa toda. Ele serve como material introdutório para que você possa pesquisar e aprender mais. O Nerdologia, por exemplo, é um ótimo canal no YouTube que introduz as pessoas a muitos assuntos - aprendi muito com eles, inclusive. Mas não devemos sair propagando para todos os lados conclusões que temos a partir desse material tão breve. Quando comecei a escrever essa postagem, pensei que conseguiria fazê-lo em questão de duas horas (tanto que pensei em escrever enquanto viaja de ônibus durante o feriado). Acabei levando dois dias para escrever essa publicação. As coisas não são simples. Nunca são.

Imagem que abre a postagem aqui. Do médico da peste visto aqui. Polo Sul Cerimonial visto aqui. Astronauta com a Terra ao fundo via NASA. Bolinha azul obtido no Wikipedia.
Informações sobre a Estação Comandante Ferraz visto em MCTIC.

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